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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

14 fevereiro, 2006

O PARAÍSO É JÁ ALI


Todos sabemos que a ciência e a técnica dá uso aos seus artefactos para o bem e para o mal (o século XX está cheio deste anivelamento ético e moral). A tecnologia não escapa a esta rotura de níveis. Mesmo que a invenção fosse concebida para um uso pacífico e como arquivo da memória individual e colectiva (lembremos, nos fins do século XIX, a invenção dos dispositivos técnicos de reprodução de som e imagem), os objectos técnicos começaram por servir a propaganda militar, política e económica e só muito mais tarde incorporaram as qualidades que estiveram na origem da sua invenção.
No sítio que procuramos na Internet para descobrir como montar um aparelho, encontramos com muita facilidade uma janela aberta para um lugar que nos ensina tudo sobre a construção de uma bomba; onde comprar a arma mais sofisticada e como usá-la. É portanto fácil, numa sociedade tecnológica aberta, receber os mesmos inimigos da sociedade tradicional. Só que o alcance parece ser muito distinto. O uso de armas ou outros engenhos de destruição é a derrocada da ideia de socialização e a emergência da ideia radical de individualização que encerra em si uma regra moral singular: é permitido fazer tudo, mesmo matar, desde que a minha moral o aprove e sirva uma ideia.
Theodore Kaczynski com a sua acção terrorista e o seu Manifesto Unabomber, apenas um exemplo, nada mais fez que aceitar como verdadeira aquela regra e cumprir o que ele pensava ser uma espécie de missão (esta palavra tem hoje, mais que nunca uma semântica original e orgânica), idêntica à contida no discurso do fundamentalismo religioso e político, e que desemboca no terrorismo. Desejando destruir os meios de produção tecno-industriais, fez tudo o que estava ao seu alcance para que essa destruição fosse global e irreversível, usando os instrumentos que a própria tecnologia lhe «fornecia» e os mesmos modos de actuação que esses meios realizam e globalizam. Esqueceu-se, porém, que a técnica apenas se pode destruir por duas vias: a primeira por implosão, um vírus maléfico, por exemplo; a segunda, por perder o seu espaço e tempo de uso, por anacronia ou destituição das funções de serventia, tornando-se assim um artefacto silencioso e estático entre as coisas naturais e artísticas, outra espécie de artesanato que avança para além dos museus já dedicados à técnica e à tecnologia.
Mas o olho (que é um fruto) dessa regra moral apaixonou-se por si e nenhum outro mundo ou perspectiva existe: apenas o olho em-paixão-consigo, sem espelho, com um slogan a néon que diz «o paraíso é já ali». E como em todas as paixões, não abundando em espaço e realidade, ao ali, que é o lugar do Paraíso, apenas se pode chegar por atalhos, que se crêem rápidos e eficazes. Para lá desses atalhos o regresso ao mundo natural e primitivo: a utopia que infesta o homem moderno que subjugado em-si, mas pensando ser pelos outros, sem rumo e objectivos, sentiu necessidade de uma afirmação pessoal, uma autonomia e uma liberdade. E esta disposição faz-se hoje, em alguns de entre nós, contra um domínio tecnológico que parece (e isso também é gerador de receio e pânico) não encontrar fronteiras ou etnias, estendendo-se para um espaço virtual por rarefacção do espaço real. Esta extensão começa, afectivamente, no nosso corpo através dos objectos técnicos que usamos e dos programas neles incorporados (para permanecerem eficazes e vivos).
Não é difícil na frustração tomar essa utopia como lugar realizável, mesmo que para tal utilize os atalhos e as regras morais mais inconvenientes. Chegaremos é sempre à conclusão que o desejo da utopia desrealiza-a, transformando-a num paradoxo, origem de um desassossego permanente.

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