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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

25 abril, 2006

NOVA VIAGEM OU UM PERCURSO POR BROCH




Na realidade, nada e ninguém é mais mortal do que o povo das metrópoles*, H. Broch

Broch sabia que era na proximidade da morte que toda a arte se cumpria, porque é nessa proximidade que a fronteira do íntimo, ou daquilo que é íntimo, se expande até atingir o exterior para onde parece estar voltada a obra. Só assim, e numa polaridade perfeita, mesmo ao nível da língua, o acordo das partes se faz. Porque nenhum símbolo se deve tornar o seu fim assim como nenhuma beleza «se torna finalidade em si própria»[1]. Porque quando isso acontece algo se banaliza depois de um ataque às estruturas do símbolo e da língua. Nesta acção, que é uma inversão de valores, e o não reconhecimento da natureza da arte e da própria realidade, o vazio impera, vazio que pode ser o assumir como verdadeiros os conteúdos da realidade, porque a verdadeira criação está em permanente diálogo com a «ressurreição», que é o outra face do símbolo da criação: «só na permanente ressurreição se completa a criação e só enquanto existir a criação, e nem um instante mais, tem lugar a ressurreição»[2]. Ora, só a criatura de língua que emerge do espaço das outras criaturas, tem o poder de invocar o seu renascimento, instante a instante, através da sua língua em diálogo com a língua nova que dá sentido à totalidade a existir, mesmo que esta totalidade esteja coberta, em parte, pelo insustentável e pela invisibilidade; o reverso derradeiro, que é uma pena da criatura em criação, é a imolação do seu todo nessa invisibilidade: de quem constituiu o seu túmulo mas não arranjou forças para o destruir a partir da planta da construção. Muito afastado desta tarefa humana, distância de fuga e de medo a essa imolação e solidão extrema, há o espaço, de asfixia da criação, onde não é possível uma recriação, nem mesmo o erro, que é sempre o princípio de haver mais alguma coisa por descobrir. Nesta acção que é um caminho, reconhecidamente contemporâneo, sobretudo das grandes urbes, onde tudo é mais mortal, há quase sempre uma «preocupação fútil com a beleza» que encontra, porventura, caminhos de chegar mais facilmente ao coração dos mortais. É, no entanto, um caminho simulado, ilusório, para fugir de uma solidão que avança e atinge de um modo terrível a vida mas não é o caminho que leva à comunidade dos vivos que está em permanente constituição e agitação, na criação de um verdadeiro símbolo que pode ser o da própria existência. Mesmo Virgílio pensando-se através de Broch parece ter ali aportado, e por esta constatação, corre a Eneida o perigo de ser queimada, porque ela não representa mais do que o rosto da beleza que não pertence à natureza da poesia, não é qualidade sua mas um alvo fora de si: Virgílio tinha-se descoberto num equívoco -das formas éticas e estéticas- que pode ser levado mais longe, caindo na descrença da arte e considerando apenas bem-aventurados aqueles cujo conhecimento e cumprimento do dever, que é a necessidade de entreajuda, fortalecem a comunidade. Todos os escritos deveriam ser queimados, mesmo a Eneida para que a contradição cessasse, para que o caminho de regresso à condição terrena se constituísse e fosse assim possível e de novo a vida. Não uma vida isolada, uma esfera, mas em comunhão, como se esta vida ainda estivesse presa a um conhecimento antigo e seguisse, sem sobressaltos, a simultaneidade do tempo e do espaço. Como se por esta acção ainda fosse possível entender a ideia de salvação em oposição a uma culpa que não é nossa, que é uma ferida ampla aberta na ontologia natural, causadora da desordem instalada na condição humana, ganhando visibilidade; causadora de efeitos, na contínua relação existencial e esclarecimento da realidade.
O escritor austríaco espia aqui, através de outro, a suas dúvidas, a sua culpa e a do destino, de não poder fugir a este abandono que é o da literatura: «écrivain, malgré lui», diz Hanna Arendt no prefácio da recolha de alguns dos seus ensaios mais conhecidos.
Falta-nos saber se a intenção do símbolo «flutuante», que pode ser pensado também como a língua nova, «uma língua para lá da língua, uma condensação de sentido», ou elementos dessa língua, e que apenas é realizado nas relações, não estará sempre condenada ao malogro? Mesmo que isto se verifique é preciso distingui-lo do erro, pois se este é o facto natural e derradeiro para todo o conhecimento individual, na arte é imprescindível, pois a errância, um movimento da literatura, vive de uma língua em constante polaridade, entre as placas que constituem a realidade que postulam o aparecimento do erro, cada vez mais refinado, até ao limite do imponderável. Mesmo no interior, no limiar donde se pode avistar a criação e depois o seu renascimento, também aqui existe luta, que ao nível da linguagem é, na maioria das vezes, a luta aberta dos elementos do paradoxo. Nesse limiar, o que constantemente é sentido é uma oposição entre a criação, que é um sacrifício, e o outro sacrifício que é um novo nascimento. Só aquele que não sabe o que «é dar à luz» não encontra o lugar da guerra e o seu conteúdo, mas o que sabe tenta sempre evitar a repetição da criação, que o mesmo é dizer, do renascimento, evita renomear, porque esta acção envolve sempre, como vimos, um novo sacrifício, e ninguém gosta de pedir isso aos seus. Porque a «mãe» sabe que dar à vida é dar à morte, assim como dar novamente um nome é fazer assentar aquilo que é seu nessa longa lista que escuta e mata quando chegar a hora. Mas a condição literária não se deve furtar, ela sabe que para se cumprir tem que nomear, mesmo aquilo que jazia sobre os valores e que ficou visível com o movimento dos quadros valorativos ou mesmo a sua desvinculação do reconhecimento do mundo: o horror, o medo, a morte, a fragilidade, a solidão, o desassossego, etc. A condição literária, -a poética, afirma, Broch - não pode prescindir de nomear. A sua missão essencial «é a de exaltar o nome das coisas»[3] mesmo que tudo se destine a fazer parte do fluxo, do transitório das coisas, i.e., de uma nova violência, mortal, cometida sobre o seu logos porque nenhuma palavra, mesmo duplicando em si a criação, consegue permanecer em unidade, porque criar é mais do que dar forma, é distinguir. «Porque tudo isto, que se define como poesia e transforma em poesia, acontece exclusivamente na duplicação do mundo, o mundo da língua e o mundo das coisas permanecem separados, dupla a pátria das palavras, dupla a pátria dos homens, duplo o abismo da existência, mas dupla também a castidade do ser»[4]. Mas sabendo desta impossível função da palavra humana, reside ainda nela, como locução e pronunciamento do mundo, uma representação espúria da realidade que não é apenas exaltamento do nome das coisas, mas um desocultar firme que vai de nós para a existência, mesmo que para isso se tenha que exercer uma pressão nas palavras a fim de as destruir, destruindo a língua e os nomes até que haja um regresso da graça[5], chamando o indiferenciável para o reino do nomeável para, por fim, ser também destruído todo o reino: este é o limite. Este é o último grau que inspira um derradeiro silêncio daquele que contempla, porque este velar exige uma atenção extrema que qualquer sentimento pode destruir. Também o Virgílio de Broch entendeu, por momentos, que a destruição da obra da sua vida era necessária à continuidade da acção e da sua supremacia, só por este acto a unidade se converteria, não em símbolo, em que se converte a obra e o mundo, mas na própria unidade que contém todas as antinomias como se fosse um ventre de gémeos.
«Num terrível equilíbrio está suspenso o riso»[6], o riso que está na origem e no fim da concórdia, aquela que aprova a beleza. E sob este riso correm as palavras, tentando reunir-se ao enorme caudal de sentido, palavras ainda não nascidas e porventura já mortas: é disto que se alimenta o riso. Para lá dele a rigidez do mundo e a impossibilidade de alguma lei que contenha a sentença capaz de fragmentar a unidade ou unir os fragmentos dispersos. Desdobrado perante nós está apenas o esquecimento que leva a esse riso e à tarefa de constituir uma forma, harmónica e digna, mesmo que esta harmonia seja já um símbolo estranho, com sentido apenas noutra língua que não a nossa.
*publicado na revista Vértice, Julho-Agosto de 2006
[1] A Morte de Virgílio, Vol.I, Trad. de Maria Adélia Silva Melo, Relógio d´Água, Lisboa, 1987, pg.155.
[2] Op.cit.pag.192.
[3] Op.cit. pag.206.
[4] Op.cit.pág.206-207.
[5] A escrita contemporânea é muito afectada por esta destruição das palavras como um regresso à graça sem lingua, que não tem destino. Podemos falar, por exemplo, de Joyce e, sobretudo, de Samuel Beckett: «tout ce qu’on peut faire, c’est essayer de chanter, mais on chante avec des paroles qui trahissent». E por esta razão «como não podemos de nenhum modo eliminar a linguagem, devemos pelo menos não deixar nada por fazer que possa contribuir para a fazer abalar», carta de Beckett a Axel Kaun, a 9 de Julho de 1937, citada por José A. Bragança de Miranda, em Política e Modernidade, Edições Colibri, Lisboa, 1997, pag.65.
[6] Op.cit. Vol.II, pag.27.

24 abril, 2006

O Simples e o Obscuro – ou duas formas


A experiência poética, no contemporâneo, faz-se sempre em dois registos: o simples e o obscuro. Utilizo aqui duas formulações qualitativas que se podem encontrar em qualquer crítica de um livro de poemas. Para alguns leitores a poesia tem que ser clara, para outros a clareza não é qualidade da poesia e ela tem que ser sempre obscura. Não pertence à semântica do obscuro, aqui como em muita literatura do séc.XX, o ininteligível ou a iliteracia. Se alguém diz que sim, que um determinado poema o preenche completamente, o que quer dizer com isso? Que uma mesma experiência passou, na unidade sincrética de significação, para o poema. Claro que obriga o leitor a ter vivido ou experimentado aquilo que ali está escrito. Mas se a poesia tem algo de novo que tem que ser dito, pode ela ser cristalina, simples, ser essa unidade de significação de que falava Herberto Hélder para descrever a noção de estilo (no texto «Estilo», no seu livro Os Passos em Volta)? Creio que não. O que é novo não pode ser simples, ou a transferência da violência e confusão diária, para uma unidade mental de significação. O novo em poesia, como em qualquer outro ofício humano, é sempre um lugar de deambulação sobre a falha: All of old. Nothing else ever. Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better (Samuel Beckett, Wostward ho- Pioravante marche). E falhar cada vez melhor, a um passo do abismo que é a dor da experiência, é falhar o mais próximo possível do objecto e aqui poucos se aventuram, leitores e autores. Estar próximo do erro, ou aproximar-se tanto do objecto (que pode ser uma experiência), é estar a caminho de uma total imersão no objecto ou na experiência não sendo permitido, a partir daí, voltar atrás: o que escreve e o que lê nesse lugar tornam-se no mesmo mundo. A poesia obscura é isso: estar próximo da deflagração mas consciente que a melhor falha é aquela que não pode engolir mais espaço para o objecto, nem recuar. A primeira leva a uma queda na prosódia (e, nalguns casos, à loucura, através da perda da linguagem em que antes desta acção se constituía o mundo) e a segunda a um equívoco literário que abunda nos nossos dias. Nesta aproximação a uma melhor descrição e visão do que queremos dizer, a linguagem tem que ser sempre nova, pois nunca tentada, deixando em pânico o leitor perante a evidência da novidade e da inovação. Os avanços do discurso poético não se podem fazer apenas (como noutros géneros literários) por unidades mentais de significação, estes produzem, correctamente, um outro ponto de vista sobre a imagem da experiência que está obrigatoriamente contida no literário e tem que ser partilhada, comum. O avanço apenas pode ser introduzido na escrita através da falha, que é um tecido sempre novo a rasgar-se, a caminho de uma ferida, por vezes orgânica, que quer dizer-se. Ora aqui reside um problema muito central na poesia do século que findou e se vai arrastar por longos anos: na verdade, daquilo que não se pode falar deveríamos guardar silêncio. Só que o silêncio não é humano, é qualquer coisa anterior ao humano que ele não entende: todo o universo tem que ser sonoro. Não podendo guardar silêncio, que é próprio do que é imóvel (Deus, por exemplo) e não da errância edipiana do homem, é necessário falar, ruidosamente ou não, da aproximação sempre oblíqua ao mundo e à experiência. Só a verdadeira literatura pode fazer esta aproximação. Pois só nela estão contidas, simultaneamente, as qualidades do humano em falha, a queda no centro devorador e a deambulação, em ausência, pelo mundo. Como a literatura e, sobretudo, a poesia entende este processo, só ela sabe quando parar: quando dar conta da falha, o falhar melhor de Beckett, está na aproximação inexorável ao incêndio, que é o objecto com a sua força de atracção, que tudo queima e nele nada de novo se reproduz. Podemos, claro, ficar longe dessa aproximação à melhor falha, a momentos antes da dor, colocando-nos nessa visão de que é possível falar sobre nós e a vida, estando afastados desse fogo. Mas aqui a inovação é rara. O espaço poético é na maioria das vezes estéril, permitindo apenas a nomeação da experiência ou a retenção, numa imagem, dessa experiência que quer ser compartilhada, transformando-se numa co-experiência. Lembro-me para esta situação do sempre novo Platão: é como pegar num espelho e andar com ele por todo o lado ( República, 596d). E o que produzimos com esse espelho? A aparência, de que a experiência pode ser transmitida e que pode ser partilhada. Só que aqui tudo é passageiro, tudo está de passagem, o que não acontece na inovação organizada no tecido da linguagem que rompe com todas as formas linguísticas (e sociais) e que é capaz «de abrir a prisão da história» (Cláudio Magris, Danúbio). Para aquele que não se quer aproximar, que quer ser simples nessa unidade de significação, resta-lhe alimentar-se da experiência da poesia, o que é um pecado contra ela. Uma experiência, um exemplo: oscilar o dedo indicador, para cima e para baixo, rapidamente, aproximando-se lentamente da esquina da mesa. O momento ideal para o poema é aquele, por analogia, que se situa um pouco antes do dedo embater na madeira e doer. É também a melhor falha. Muito antes nunca saberemos o que é a aproximação ao choque e à dor, nunca saberemos o que é falhar melhor, depois é a dor que torna toda a experiência num longo clarão, que cega, que torna ininteligível o mundo e o seu comunicar-se. Sabemos que falhamos sempre, que é necessário falhar, mas então falhemos bem, saibamos não nos precipitarmos na massa negra, nem, por outro lado, deambular pela experiência como se esta fosse uma página de literatura em branco.

08 abril, 2006

O LUGAR DAS COISAS OBSCURAS

Toda a arte se faz da máxima indeterminação à máxima determinação. A passagem é feita pelo espírito criativo, mas esta extrema determinação só é visível na obra. Mesmo a morte que pode ser considerada, aqui, a suprema determinação, só no nome tem sentido para o sujeito. Este fim é a passagem ou reunião que toda a obra faz, como um arco inútil. Mas não é aqui que reside a dinâmica da literatura, pois esta no seu movimento de determinação apenas muda o curso da vida de um modo indelével, como uma memória em busca da sua forma. A arte, toda a arte, tem uma profunda relação com a morte, como se o seu alvo fosse uma inteireza indeterminada, escondendo da morte algo que ao próprio sujeito sobreviva, não no sentido de alcançar a glória eterna, ou da lei da morte libertar-se, mas para que o cumprimento da arte tenha sentido, não, portanto, o cumprimento com sentido da vida. Como Kafka aponta no seu diário em 13 de Dezembro de 1914[i], as melhores páginas escreveu-as para morrer contente, porque essas suas melhores páginas não reflectem sobre a vida ou o real mas sobre a própria definição de arte, que encontra na morte a simultaneidade do saber de mestre e eterno aprendiz. O que se estabelece com a morte, e verificamos isso em muitas obras literárias deste século, é, a todos os níveis, uma relação de liberdade profunda e que está presente de um modo radical em todas as consciências modernas. Em Broch, como em Faulkner, essa liberdade necessariamente humana, estaria posta em causa se não houvesse esse arco tensional da vida, através da arte, para a morte. Porque nos dois autores, e sobretudo nas suas principais personagens, a vida em sua inteira liberdade não ficaria completa se não houvesse o enfrentar essa suprema verdade que é a morte. Abandonar a luta ou fugir a essa força que se move e nos atrai para um fim, é abandonarmo-nos ao domínio da máxima indiferenciação que é o real, abandonando-nos à falha «genética» do mundo que é irreparável. Mas como só aos humanos isto aflige, por ora, é nas obras deles que deve ser impressa a sua topografia: é esta a utilidade da literatura e, porventura, a única. É neste diálogo entre falhas que se mostram e têm naturezas diferentes que o mundo de cada um, e possivelmente o todo, dia a dia recomeça até ao momento em que a falha for tão falhadamente iluminada que já não reste dela senão um sinal, porque falhar melhor é sempre falhar sem luz.
Toda a analítica da actualidade que transporte ou apenas deseje transportar em si uma cura, não foge do percurso da imensa claridade até à terna sombra que não é mais do que esse sinal que atrás referimos. Como a história de Benjamin, queremos primeiro cegar para depois ganharmos, pela arte, milagrosamente a visão. Ou como diz Broch, através do pedido de Virgílio ao seu médico, «cura-me para que possa morrer»[ii]. Só a partir deste momento, quando as palavras cumprirem a arte poderão estas voltar-se para a sua origem que não deverá estar muito afastada do trágico ou da dupla condição humana. As línguas esqueceram-se de si para servir o humano e o seu espírito, para gerar esse confronto em vida com a máxima determinação. Estão agora prontas, no seu silêncio, a revelarem-se. Este parece ser o seu fito. Tendo escutado a dor dos homens, chegou o momento de se escutarem, não olhando para o futuro mas olhando para o passado, em tensão com a origem, onde deve estar o nascimento de todas as línguas e suas causas. Neste momento deve também haver o que suspenso desde há muito aguarda uma incarnação. Toda a arte, mesmo a das grutas, é apocalíptica, não é de hoje esta inclinação. É apocalíptica não no sentido em que, revelado, todo o mundo volta ao caos primordial mas se torna apenas uma subtil revelação.
[i] «Todas estas passagens delicadas e muito convincentes têm sempre a ver com o facto de alguém estar a morrer [...] Creio que vou ser capaz de estar com satisfação no meu leito de morte, estas cenas são secretamente um jogo», pg.286.
[ii] A Morte de Virgílio.

04 abril, 2006

DO PROJECTO HUMANO EM TRADUÇÃO


(Ao ler O Absoluto que Pertence à Terra, de Maria Filomena Molder [Vendaval,2005], lembrei-me deste texto. Espero mais tarde falar realmente do livro)

O escritor actual aproxima-se mais da ideia de tradutor do que de autor[i]. Perante a ideia de tudo estar dito ou não ser capaz de ser dito, o escritor limita-se a reunir na língua outra língua, porventura com uma gramática e uma semântica própria, sem nunca se saciar. Por este facto fica para sempre afastado do domínio da verdadeira criação, com marca de autor, que é o original. Só apenas este sacia abrindo as portas da glória. A noção de citação no dossier contemporâneo, como podemos ler por exemplo em Benjamin, está presa àquela ideia de o autor já não o poder ser senão em tradução. Assim, de cada vez que se cita, o que escolhemos é uma espécie de mónada que não só resume a obra mas insere, nas palavras citadas ou transcritas, a sua totalidade. Parece ser mais fácil, sobretudo pela sensibilidade apocalíptica, pelo receio do fecho do tempo, da quebra da sua durabilidade, escolher um pequeno espaço da língua que traduza e ilumine o restante. Se as grandes obras do romantismo e do realismo acabaram para dar lugar neste fim de século a pequenos livros, cada vez mais finos, é normal que a citação ocupe o limite deste trajecto. Mas não estamos livres, depois do fim da aura benjaminiana, da nossa identidade, ou o que em nós assim lhe podemos chamar, que substitui em parte a glória, ser uma acumulação de evidências. Evidências, sobretudo, que nada dizem aos outros – que terão certamente, conhecendo a obra, outra citação a opor como se de uma forma de vida se tratasse, e assim sendo, nunca poderão servir de guia ou marcas da genialidade deixadas na paisagem cultural para serem seguidas pelos que vierem (como entendia Kant, na Crítica da Faculdade do Juízo, a ideia de génio e genialidade). A singularidade da citação, que é a singularidade de uma escolha em-si, permanece encerrada para sempre (excluindo o citador), pelo que não tem interesse afirmar das diferenças da voz interior que é diferente em quem cria e em quem traduz: este é um reino sem fixação. Não podemos por isso distinguir, no momento actual, aquilo que no haver, devir, distingue o criador do tradutor. Se a glória era coisa que os distinguia também esta hoje pouco importa pois sucumbiu ao efémero.
Entre escutar a voz e ser a própria voz a diferença é curta em exercício, embora a saibamos abismo. A língua não é real, e assim sendo, a sua expressão cabe em todos os suportes legíveis como um acordo semântico já previamente estabelecido em qualquer língua ou numa língua comum a haver. Só reconhecemos um poema original no mesmo espaço em que identificamos o mesmo poema traduzido. Quem diz um poema diz qualquer texto. O antes não tem decifração, apenas ganha o nosso interesse a partir dessa «habitação passageira»[ii] que já tem luz suficiente não para distinguir completamente (esse é uma função e um acto individual com uma gramática própria) mas para iluminar a coisa. Claro que há errâncias (que são traduções e é uma qualidade da língua) que nenhuma habitação contempla mas, possivelmente, também o tradutor não estava interessado em abrigar-se nessa habitação por duas razões: ser genial ou insuficiente domínio das línguas[iii]. Esta habitação é única e singular, e tem apenas uma porta como o destino, deixando por ela passar o que cumpre as seguintes regras: primeira, o que é transitório, o que não vai permanecer; segunda, o que está de passagem, em percurso afeccional para o entendimento da comunidade dos vivos; terceiro, o que não se mostra frágil, doente, isso quebraria as duas anteriores regras[iv]; e por último, nessa habitação tudo tem de conviver. É a partir daqui, e sobretudo a partir da quarta regra a cumprir, no direito de admissão, que a indiferença cresce para nós, con-fundindo original com tradução, autor com tradutor, língua com língua. Repare-se, no entanto, que a indiferença completa não pode existir no interior da habitação (não podemos pensar isso como não podemos pensar a diferença radical, o inumano por exemplo) e quando isto parece suceder há uma ordem de expulsão, o que ocorre quando o domínio de uma língua, a sua solidez, eclipsa a língua materna, a língua do tradutor.

[i] Paul Valéry é um entre muitos que defendem a ideia de o acto da escrita ser sempre um acto de tradução. Ideia também apresentada no prefácio à tradução francesa da obra poética de Constantin Kavafis, POR Marguerite Yourcenar. Valery afirma: «Écrire quoi ce soit, aussitôt que l’acte d’écrire exige de la refléxion, et n’est pas l’inscription machinale et sans arrêts d’une parole intérieure toute spontanée, est un travail de traduction exactement comparable à celui qui opère la transmutacion d’une texte d’une langue dans une autre» ou ainda «Nos idées nous sont propres et pourtant étrangères, comme nous sont propres et étrangères les douleurs Qui nous viennent traverser», Ouevres I, Biblio.de la Pleiade, NRF, Paris, 1955, pg.211 e 321. Para o mesmo assunto Cfr. «A propósito de uma tradução» em Semear na Neve. Maria Filomena Molder. Relógio d’Água, Lisboa, 1999, pgs. 24-39, onde, citando Hamann, se diz «que toda a fala é um acto de tradução».
[ii] «Semear na Neve»,pg.32.
[iii] Para a primeira razão temos o exemplo, e outros abundam, de Hölderlin na sua tentativa de traduzir Sófocles, que pretendia derradeira e nunca o pode ser. Para a segunda temos outros milhares, conjunto muito mais vasto que o anterior que abunda na tradução e mesmo nos originais.
[iv] Penso esta habitação como uma «pensão» clandestina.