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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

23 junho, 2008

O VOO DAS AVES



Faço eco aqui de uma exposição intitulada “ O Silêncio das Cegonhas”, a realizar no Centro de Educação Ambiental de Arronches, no dia 28 de Junho (sábado) de 2008, pelas17.30 horas.
A mostra em apreço apresenta 22 trabalhos da autoria de Carlos Inácio e Pedro Inácio.


(deixo fotografia de Carlos Inácio a acompanhar um texto meu sobre essas aves)






“As aves são, neste momento, as divindades dos mortais»
(palavras de Pistetero em «As Aves», de Aristófanes)

Há palavras difíceis de pronunciar, parecem comer-nos a boca, como se nelas já houvesse um mundo ou um presságio. Áugure é uma delas. É saudação no italiano mas era no império romano, e em toda a bacia mediterrânea, o nome dado aos sacerdotes que pelo voo das aves auguravam sobre a realização de uma determinada acção. Passados tantos séculos não creio que haja alguém que, pela forma como a ave se ergue e toma um rumo nos céus, se decide ou não empreender uma acção. Não porque sejamos mais racionalistas que os grandes romanos, mas porque perdemos a linguagem com que se fazem esses presságios. Eram os restos de uma observação da natureza isenta de linguagem, de um tempo mudo onde a predação e a sobrevivência imperavam.
O que hoje se pode comparar a essa observação e ao seu ditame talvez se possa encontrar na escrita de um verso, nesse nascimento afectivo das coisas nas palavras, cada vez que, alinhadas, são depositadas em página branca ou povoam o céu do nossa mente. Rir-se-ão muitos desse homem que, na margem do mundo, olhava a extensão do horizonte, demoradamente, e anotava o fracasso ou o bem devir nessas aves migratórias que passavam o grande mar, para criarem em pátria quente e fértil os seus ninhos. Nunca conseguiremos demonstrar se tinha ou não fundamento a observação do voo branco da cegonha. Nunca o conseguiremos demonstrar porque foge à lógica e ao dizível, que marcaram até ver o conhecimento humano.
Então regresso ao Sul de há muitos séculos e preparo-me, não para entender, mas para me sentar junto dos áugures, seguir-lhes os olhos e depois as aves, e ver bem marcado no azul um corpo sem doença, que nada tem do verbo com que representamos o mundo e fazemos as nossas filosofias. Estar ali é abrir um buraco na enorme prisão que é a linguagem, e por ele passar os olhos (que bem sabia se fosse o corpo!) para um outro lado.
De então regresso ao Sul de agora. Regresso a essa dimensão silenciosa das aves branquejadas, cegonhas portanto (sei que há doutras cores mas são estas que ecoam na minha planície). E vendo-as, sem piar ou grito aflito, imagino o que não sendo hominídeo para ele caminha, animal sem faringe, protótipo de homem que apenas com o ressoar dos lábios apascentava o medo e chamava pelos seus. É ainda assim a cegonha no seu piar de bico, pois lhe falta órgão para o som vocal.
É bom que as vejamos no restolho, nas chaminés abandonadas e nos postes da civilização, pois embora tímidas carregam a nossa imortalidade.