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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

20 abril, 2009

Gosto de pensar que o céu nos olhos educados dos ocidentais é um problema grego





I.
Temos as imagens que nos chegam. Têm origem nas catástrofes naturais que assolaram algumas áreas do planeta: China, Birmânia e Itália. Vemos corpos sem vida expostos ao sol; à beira de um rio na Birmânia; e corpos vivos sob a cor e o peso do cimento. Vê-se-lhes os olhos e os lábios cobertos de poeira. Vê-se-lhes a vida. Vê-se-lhes a alma. Pois a «alma mora no ponto onde o eu se decide» a permanecer vivo. Depois do nascimento precisamos de um segundo nascimento para sermos novamente dotados de alma, diz-nos Michel Serres: damos a alma ao lugar solar no nascimento, para a adquirirmos, depois, com a salvação do nosso corpo. No risco que corremos para nos salvarmos, depois do risco que corremos num facto do mundo, nascemos outros, parcialmente outros ou sempre outros. Só agora compreendi. Pela linguagem de Serres compreendi como se fosse coisa nova.
Pela mão podemos encontrar no corpo máquino-vertebrado o que se diz da alma. O dedo torna-se mundo e o lugar do corpo que toca enche-se de vida, de si, pois entumece-se com a «alma local» [mas sempre que os lábios se tornam conscientes no exacto lugar e momento do toque do dedo, este perde-se, regressa ao mundo, a um lugar de silêncio sem nome]. A alma global que convoca todas as outras apenas a podemos encontrar num lugar próximo «do espaço da emoção» (pg.18).
Um dia seremos nada, já que mortos ou o nada do cyborg com dedo maquinal a tocar o lábio, pálpebra da máquina. Isto é uma ficção humana onde o lugar da emoção e da tatuagem é imprescindível e possível. Porque a tatuagem nas dobras e superfície da pele é o máximo táctil do intacto que é a alma.

II.
Hermes, o mensageiro (hoje em dia a informação e a comunicação em rede) matou pela música Argo Panoptes, o que tinha o corpo coberto de olhos, o espião supremo, o que vigiava mas não punia Io (a amante de Zeus transformada em vaca e depois já em seu corpo rainha do Egipto). A pele de Panoptes foi utilizada para compor a cauda do pavão de Hera (mulher de Zeus). Em conclusão: Hermes matou o princípio da teoria, a visão, para tudo unir em rede e comunicação. Mas também esta não prescinde da visão já que a escrita é visionária.

III
Passamos a existir enquanto língua. Já não podemos falar, isoladamente, dos cinco sentidos. Eles só são em linguagem: «o verbo ocupa e anestesia a carne» (pg.54) ele se fez carne. E quando no ruído a palavra é esquecida, o corpo quer soçobrar porque está habituado às palavras que o curam de ser só interior. Faça-se então mais ruído e toda a pele e a sob-pele são agora um corpo intenso. Se o ruído parar as palavras voltam. Mas é preciso que elas fiquem suspensas, por instantes, sem nenhum encontro com a carne. Sem fala. É isso que o corpo quer dalguma música contemporânea.
Voltemos à pele ouvido, a Panoptes que tudo vê agora na cauda de um pavão. A pele é ouvido e superfície táctil. Apenas dois sentidos no mesmo órgão que é a pele: audição e tacto. Não interessa lembrar ou pensar, não tem interesse a linguagem para que se possa constituir no momento um território que seja nosso, só nosso e variável. Não precisamos de ver, basta a acusmática para que o corpo se feche ao mundo e se reconstitua. Só assim nos podemos misturar, já que os olhos não podem misturar: são o lado de fora de nós.
Ficamos pele e ouvido. Tudo impresso como nas dobras e vales do cérebro. A imagem das suturas cranianas revelam-se também no que protegem e, ao longo do tempo, na pele.
A pele não tem centro, é um sistema de comunicação e informação. Já não precisamos de luzes nas margens para a nossa rota, não precisamos de faróis na noite que são pontos centrados na vasta escuridão. A pele coberta pela inscrição natural é visitada pela alma, diz-nos Serres (pg.72).

IV
Desde sempre a teoria esteve unida à visão, na e com a palavra. Mas também a intuição, como nos mostra Kant na sua Crítica da Razão Pura. Isto quer dizer que o conhecimento é um problema de sólidos. Só que, desde os fins do séc.XIX, o percurso do conhecimento desviou-se, ligeiramente, para o líquido e deste para o ar («Tudo o que é Sólido evapora-se no ar», diz-nos Marx por Marshall Berman). Caminha-se na direcção do fluido (Serres, pg.78), do som, do ar e da mistura: um novo tecido, portanto. E sentiu-se que esta alteração era benéfica para a saúde. Se o ruído é o princípio da cura (mesmo em medicina, já que todos os órgãos têm os seus ruídos e patologias) a linguagem com que vimos cerceando o conhecimento é sempre o avolumar da morte já que prescinde de muitos sentidos, sobretudo do tacto e da audição, que unem o corpo à sua circunstância; a linguagem «anestesia os cinco sentidos» (pg.87).
Nota: mas o ouvido não precisa de linguagem. Escutar tem que ser uma acção que rompe a barreira da linguagem. Não é por acaso que aquele que fez da linguagem o lugar do conhecimento, Sócrates, no instante da sua morte, quando a cicuta lhe tingia o corpo exclama: «o som destas palavras […] não deixa ouvir nada». Mesmo assim solicitou ao seu amigo Críton para falar, ao que este respondeu: «Não, Sócrates, não tenho nada a dizer». Para que Sócrates escutasse o que vinha. «Então deixa isto, Críton, e sigamos este caminho, visto que é por ele que a divindade nos conduz» (Críton, último diálogo. Utilizo tradução de Manuel de Oliveira Pulquério para Apologia de Sócrates/Críton.

V
Para Michel Serres existem três fontes de ruído. Primeira: o organismo enquanto caixa negra que guarda os ruídos dos séculos e que os evidencia na necessidade. Com este ruído atinge-se o silêncio (que em meu entender já não existe) e a linguagem. O ataque à linguagem pelo ruído é o mais feroz e violento de todos, mas, e ao contrário de Serres, torna mais sadio o corpo, pois tem necessidade dele para acrescentar territórios, sintomas ou, simplesmente, desviar-se, por instantes, de uma coacção do tempo. Segunda: o mundo sonoro é também fonte de ruído. É uma noção de ruído enquadrada na ideia que a natureza faz barulho para sobreviver. Terceiro: o colectivo. O ruído protocolar das comunidades: «o ruído define o social» (pg.105). Mas define-o pelo lado da sua organização e inter-relação. O ruído é aqui e sempre uma distância. E esta distância será menor ou nula no processo de imersão. Sempre que deixamos de ouvir um determinado ruído é porque já faz parte do nosso espaço audível e, por aí, do nosso território.
O humano aprendeu com o ruído duas coisas: que reúne espaços e tempos distintos; que assusta que não reconhecem pelos ruídos o território (o ruído é inoculador do estranho). Por esta razão a guerra faz barulho e os antigos exércitos antigos levavam o ruído nas primeiras fileiras: se para os da casa era «sinal de união»; para o inimigo era o estranho e, por isso, o medo.
Não é, no entanto, o ruído que disperso pelo mundo pelas técnicas humanas torna incurável o espírito e ameaça a natureza, já que ela é também origem e fonte de ruído. As espécies ameaçadas, ou que se extinguiram, são aquelas que não conseguem constituir novos territórios à «vista» do estranho ou da alteração dos seus habitats, ao contrário dos humanos que conseguem, pelo que é audível, recuperar lugares. O que a natureza nunca vai entender é que o ruído humano é informação, coisa que o humano sabe, desde que Hermes venceu Argos Panoptes.
Tudo faz ruído. A voz, por exemplo. Há, no entanto, que afastar, como afastamos das nossas casas, o lixo ruidoso; aquele que coage sobre a nossa liberdade e capacidade de constituir territórios novos ou acrescentar espaço ao nosso território privado.
No princípio está o ruído, depois fez-se linguagem e uma nova camada sobre o ruído surgiu, o sentido. Mas antes «de ter sentido a linguagem faz ruído: o ruído pode dispensar o sentido, mas não o inverso» (pg.117). E depois uma nova camada, a escrita, que pretende suprimir o ruído pela luz, pela linearidade, mas tornou-o global, contaminando todas as línguas. A escrita como tecnologia humana para a comunicação levou o ruído a difundir-se pelo mundo «literário» (como os turistas ocidentais em mundo selvagem). E o mesmo acontece com a música: «a linguagem precisa de música; a música não precisa absolutamente de linguagem (e significar e decifrar na música é a sua morte). A música precisa de ruído; o ruído não precisa absolutamente da música» (pg.121). A música, tal como a escrita, leva na sua cauda o ruído, o sem sentido e a desordem.
O que temos vindo a constituir (no conhecimento humano) é sempre uma passagem através do ruído. Só que nesta passagem, ao ultrapassar-se, levamos na cauda parte desse ruído das margens. Não foi por Ulisses (na Odisseia, Canto XII) ter obrigado os seus marinheiros a colocarem cera nos ouvidos e a atarem-no ao mastro, que se perde o ruído doce das Sereias. Ele, com os ouvidos destapados, tinha que ouvir o doce canto e levá-lo como ruído, para o outro lado, já que esse canto representa o contacto com o mundo, a que o homem não se pode furtar, embora algum conhecimento tente evitar este contacto com o banal. Mas, ao contrário do que afirma Serres (pg.123) ele não vence, o mundo banal é que vence. Por todo o lado, em todas as paredes, prédios, ruas e esquinas as passagens fazem-se sempre através do ruído. A harmonia que Leibniez vê no mundo e originada em deus é agora uma obrigação secular de convivência e conformidade. Fragmentado, o mundo vive agora sobre um ruído de fundo que, tal como a cola, mantém unida a «obra».
As sociedades, tal como o corpo, mantêm-se unidas pelo ruído que é um fundo desde que a visão irrompeu hegemónica no conhecimento humano e na metafísica ocidental. «Quem não tem o dom da vida faz filosofia» (pg.131). É exagerada esta afirmação de Serres, mas a concepção da filosofia andou (desde a história de Tales de Mileto) afastada do encontro com a vida, e nela, com o furor e o ruído.

VI
Todo o corpo é um tímpano global: ouvimos por toda a parte do nosso corpo. O corpo é uma caixa de absorção sonora e de ressonância. E se os olhos nos endireitaram; se por eles ganhamos a postura erecta que temos hoje, os ouvidos cedem o equilíbrio ao corpo. Só quando o corpo se coloca na posição de escuta é que nos dobramos, tornamo-nos flexíveis. Isto significa que a tentativa de ocupação, por imersão, de um espaço audível faz alterar a postura erecta. Dobrar o corpo para a imersão (seja ao telefone, microfone ou junto ao altifalante) é conduzir o corpo em dobra para a escuta e para a imersão no sonoro.
O corpo quer obedecer a essa escuta; quer fazer parte do fluido: nisto ainda somos peixes. E querer fazer parte desse fluido é deixar-se conduzir até ao som e, por ele, construir o desenho da fonte sonora. A diversidade da escuta serve para isso: empreender uma construção a diferentes níveis, pois também a natureza e constituição do nosso ouvido interno e externo é distinta. Ressoa já no nosso ouvido interno não apenas um som mas uma estrutura com que o mundo se pode ver de uma maneira diferente. Depois de muitos obstáculos e filtros o som chega finalmente a um lugar central onde se ergue a sua imagem: «a caixa, útil ao conhecimento, serve a vida. Eu a sigo. Moro nela» (pag.143). Na maioria das vezes sem língua.
Calar é, hoje em dia, um verbo importante: calar, porque só assim podemos entrar no processo de escuta; calar para que a quantidade do discurso seja menor mas se reconheça nele o mundo. E só depois, sim, ajudar a erguer esse mundo. Falar se parar e não se aperceber que enquanto fala outro significado vai sendo construído pelo discurso do outro: o rumor não cessa.

VII
O território sonoro que construímos e vamos estabelecendo ao longo da vida e do dia, torna-se pela imersão em coisa nossa, íntima: coisa natural.
O desvio do nosso percurso para novos territórios faz de nós seres em constituição. Para um citadino a ida ao campo é a imersão num novo território. Mas este espaço acústico contém sons e ruídos que não fazem parte do seu território urbano. É, por isso, fácil instalar-se a melancolia e o desassossego. Os sons da natureza são, para estes ouvidos, coisa artificial, enquanto o bulício da cidade lhe é natural. Esta passagem faz-se sempre através dos sons. Os sons dos animais e insectos no campo é coisa artificial para o urbano, enquanto na cidade o que é artificial é natural. Entendemos assim a ligação da adolescência (e não só) aos novos meios de comunicação.
Mas a cidade e o campo deixaram de ter, neste aspecto, uma separação nítida. Há lugares no campo (em vilas e aldeias) que constituem a mesma relação com o artificial. Só em habitação dispersa é ainda possível sentir-se uma nova imersão e a constituição de efeitos que podem alterar o nosso humor.

A relação das paisagens sonoras

Como todo o corpo é ouvido; como estamos imersos em territórios sonoros, quando nos deslocamos, deslocamos connosco o nosso território (coisa íntima). E é este confronto que cria pânico, medo e melancolia. E para recompor o território leva o seu tempo, podendo ser mesmo o resto da vida. Por isso a melhor forma de recompor um novo território deve fazer-se (ao contrário do que pensava, em parte, Ulisses) pelas passagens que são os ruídos e o rumor. A substituição faz-se, lentamente, por imersão: o que à partida é artificial deve tornar-se natural pois só assim se torna elemento do nosso espaço acústico. A melancolia persistirá enquanto todos os sons que preenchem a nossa habitação não nos forem naturais.

(as páginas acima referidas são do livro Os Cinco Sentidos – Filosofia dos corpos misturados, de Michel Serres)




Francis Bacon, Portrait of Henrietta Moraes, 1965

19 abril, 2009

Pedro Chorão


Se forem para os lados do Fundão, desçam a central avenida da Liberdade, e mesmo ao fundo, junto à estação, encontram um edifício que já foi fábrica e agora é lugar de cultura: a Moagem. Se entrarem, podem apreciar uma retrospectiva de 35 anos de pintura de Pedro Chorão. Um trabalho interessante. Aqui ao lado deixo-vos o que pude trazer.

07 abril, 2009


Depois de arrumar o que estava por arrumar voltei.