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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

19 abril, 2008

UMA TERCEIRA MÃO





Dá-me por vezes uma vontade que não domino. Entro numa livraria e compro de uma assentada todos os livros de poesia que encontro e que foram publicados nos últimos meses. Depois vou para algum lado, mesmo para casa, e dedico-me a eles. Mesmo conhecendo bem alguns autores ou desconhecendo-os de todo, esqueço o que ouvi ou li sobre eles, e penetro nessa matéria negra que são os versos dos outros. Desse saco de livros que comprei e li destaco dois: A Terceira Mão de Manuel Gusmão (Caminho) e Vida: Variações de Bénédicte Houart (Cotovia), ambos deste ano.
Conheço a poesia do primeiro, mas nunca li nada do segundo (um poema aqui ou acolá, talvez. Mas o problema das revistas de poesia é que se tornam vendavais de nomes que se perdem e esquecemos). Manuel Gusmão tem nos seus poemas maiores um rastro que é fácil perseguir. Seguimos neles um percurso poético sem sobressaltos semânticos e construímos em conjunto essa ferida que a poesia, mais do que a prosa, sempre introduz. É bom ouvir renascer, em palavras doutro, alguns poetas convocados de que gostamos e com os quais aprendemos no seu devido tempo: Fiama, Herberto, Carlos de Oliveira, Neto Jorge e outros. É bom que as ideias emotivas de que vive o nosso percurso de leitura se levantem e reconstruam, na evocação, o desejo que percorre a superfície do mundo. No entanto, sou tentado também para uma terceira mão, aquela que se ofende, que se devora na leitura do inesperado e do infértil. E no livro de Gusmão abundam motivos para a ceifeira desta terceira mão que também, sem o saber, escreve um poema sobre outro. Ela não gosta da sobreadjectivação, da convocação de elementos metafóricos que não introduzem nenhuma valência semântica. Há muitos exemplos neste livro de Manuel Gusmão, sobretudo no capítulo Quatro Andamentos para um Alfabeto. Vejamos «e abre a árvores ao claro incêndio das suas aves» (pg.26). Porquê claro? Palavra repetida também em «Claro traço» (pg.33) e «enseada clara» (pg.26). E mais adiante «árvore da música», ou o enfeite da imagem em comparação «o flanco contra o ventre / o barco enfrentando o mar» (pg.29). Ou «a montanha lança uma pauta de sombra sobre a terra (metáfora repetida também na pág.32). Porquê pauta de sombra? Porquê pauta?
A terceira mão quer escrever um poema sobre outro poema e não consegue, devora-se.
O livro merece ser lido e, sobretudo, escutado. É este o paradoxo.

Já o livro de Bénédicte Houart é uma variação sobre temas do quotidiano. Alguns ultrapassam o suportável por serem risíveis, mas lido o riso no primeiro verso tudo avança melhor. Exemplo: «Hoje o meu cão faz dois anos de vida» (pg.31) (a terceira mão retiraria «de vida») mas deixa andar até «talvez os animais sejam donos do silêncio». E assim já se percebe o riso e o sulco que o poema faz.
Entre um registo simples do quotidiano e a evocação do trágico, os poemas deste poeta lêem-se bem, mas com algum desequilíbrio. Há pequenas ilhas que nos satisfazem. Exemplo: «abandonando a sombra em todo o lado».
É um livro a ler.

02 abril, 2008

O PÃO AS MÃOS E A CASA


Em Seia existe o Museu do Pão. Por estes dias, neste museu, o tema será “ Pão em Mão”.

E as fotografias serão do Pedro Inácio.
(Um pequeno contributo meu.)


De que me lembro? Sei que é Verão. Essa longa estação parada na memória que se quer viva. Sei que é manhã. Há já o zumbido dos insectos na vidraça por trás da cortina. Sei que é Domingo e se festeja. Sei-o, porque há no ar um cheiro de trigo, centeio, água e fermento e estala no fundo do jardim, sob telhado há muito construído, a lenha no forno aceso. E sobre aqueles cheiros um se evidencia, o de um corpo que sempre foi velho em mim, corpo de avó. Não me levanto. Deixo-me estar, envolto pela madrugada e pelo som que as mãos fazem tendendo a massa que mais tarde irá ser pão. E haverá vinho para os outros. Colo-me parado àquele som que é um rosto em esforço, desenhando as mãos que ora se afundam ora se erguem em dedos carregados de branco. É preciso que esse odor preencha todas as fissuras da casa, por isso as mãos não podem parar. É preciso que toda casa conheça o pão antes que o calor o enforme; antes que mãos já lavadas lhe escutem o toque a cozido e o ponham direitinho sobre a arca do corredor. Sei agora o que é ter um domingo e mãos assim.