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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

17 setembro, 2009

Orhan Pamuk


Outras Cores
Editorial Presença
Lisboa, 2009

Os textos de crónicas e ensaios que alguns escritores publicam em revistas e jornais de circulação e divulgação restritas ou que tendo um público mais vasto se perdem na voragem dos dias, quando reunidos ganham outra leitura e um tempo mais propenso à análise. É isso que acontece com o livro do escritor turco Orhan Pamuk, prémio Nobel em 2006.
O subtítulo do livro, Ensaios sobre a Vida, a Arte, os Livros e as Cidades, remete o leitor subitamente para o espaço multidisciplinar onde o ponto de vista autoral é hegemónico. Poucos detêm este estatuto e são menos os que o merecem. Pamuk tem estatuto e merece-o.
De todas as áreas que a sua prosa cativa apenas merece algum desconforto quando escreve sobre de livros que o marcaram. Não porque não interesse a perspectiva de alguém que sabe do ofício, mas porque Pamuk nada de novo acrescenta à obra de Thomas Mann ou Dostoiévski, por exemplo. Ao invés, torna-se lúcido e original quando ensaia sobre política, nomeadamente, sobre o pedido de adesão da Turquia à UE, ou sobre os conflitos individuais e civilizacionais do povo turco no privilégio de uma ocidentalização da velha Turquia ou no renascimento de um nacionalismo unido à religião.
O seu ponto de vista sobre a Turquia actual, que já lhe valeu algumas idas a tribunal e a crítica permanente de alguns media e do poder político, merece uma leitura atenta e torna-se, a meu ver, indispensável tanto para o eurocrata que se interessa pelo processo de adesão da Turquia à União, como para o cidadão europeu que pensa este facto. Nada perderiam alguns políticos com a leitura destes ensaios inseridos na segunda parte do livro com o título «A Política, A Europa, E outros Problemas por Sermos Nós Mesmos».
Assoma aos seus textos políticos a lucidez de alguém que consegue manter um ponto de vista intermédio entre um estado secular e muçulmano; entre a porta da civilização europeia e a do Oriente, cada vez mais vítima de si e dos seus e menos do ocidente europeu. Este ponto de vista só podia ter nascido da solidão de alguém que olha o Bósforo como um limite aberto e a cidade de Istambul como o projecto de vários impérios e da «transumância» humana.
E quando Pamuk desce às ruas da sua cidade e fala dos seus, ganha-se um miradouro sobre o mar e as gentes, já que realça os contornos e torna visíveis os confrontos ideológicos e culturais. Pamuk é exímio na análise destas macroestruturas, deixando amiúde no texto problemas que nos questionam directamente mesmo quando escreve sobre coisas simples como uma barbearia. Constata, por exemplo, que desde a sua infância até aos dias de hoje as ferramentas de corte e barbear nada mudaram (com a introdução apenas do secador). Pamuk conclui que a não introdução de outros aparelhos faz com que estes profissionais não tenham mudado a sua maneira de falar. Tem alguma razão este escritor: na verdade, na actualização contínua da tecnologia e de alteração dos meios de comunicação promovem uma alteração das nossas formas de pensar, logo de falar, e esta alteração é mais acentuada na comunicação escrita (ver Barbeiros, pg.74. Texto inserido na primeira parte da obra com o título «Vidas e Preocupações»).
Dirigidas aos leitores da obra ficcional de Pamuk, as duas partes restantes «Os meus Livros são a Minha Vida» e «Outras Cidades, Outras Civilizações» têm um carácter mais autobiográfico a que se juntam contos e algumas entrevistas ao autor.

15 setembro, 2009





Numa tradução do poeta e crítico Manuel de Freitas, chega-nos de Espanha (pela mão da Averno) o livro A Caixa Negra que Josep M. Rodríguez (Barcelona, 1976) tinha editado em 2004.
Os poemas que compõem este livro inscrevem-se do lado da leveza, pelo menos do lado da substância que lhe é par ou nos conduz a substâncias que pela sua aparente ou real leveza raiam a invisibilidade. A neve, a escuridão, o obscuro, a luz e o tempo correm sobre um carril poético que a todo o momento se eleva para lá das marcações do real.
A voz poética, essa entidade não instrumental, que se enche de linguagem e se esvazia em poema, confronta-se, sobretudo depois da década de cinquenta do século passado (e mais agudamente depois dos anos oitenta do mesmo século) entre ser um dispositivo narratológico de reconstrução da realidade, unindo a história da língua a cada palavra, e um decalque, em linguagem, de um real que se mimetiza a todo o instante no poema.
Este decalque na leitura inaugura uma qualidade que diminui muitas vezes o poema, já que obriga o leitor a focar-se num referente que, diluindo-se a todo o instante no sujeito-autor, acaba por distrair.

«O autocarro afasta-se
e a praça é uma aranha de seis patas»

ou

«Fechado e mim mesmo,
sem portas de entrada ou saída»

E gostei muito do poema No Impreciso, Incompleto, que aqui deixo na versão portuguesa, por encontrar nele os ingredientes da arte poética deste poeta espanhol.

Sentado à mesa
parto o pão com as mãos

e a toalha
enche-se de migalhas,
como se algo nesse gesto escapasse ao próprio gesto.

Há sempre perda:
até mesmo agora
uma parte de mim não me pertence.

Lá fora também se esfarela o dia:

cada floco de neve é uma trégua.