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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

04 março, 2016

Primeira Leitura de «A Crisálida», de Rui Nunes

Autor: Rui Nunes
Título: A Crisálida
Editor: Relógio d'Água/2016


Crisálida, que sabemos ser o lugar e o tempo da metamorfose, foi o título dado por Rui Nunes ao seu último livro. Livro pequeno como sucedeu com os últimos: o desequilíbrio dos olhos não permite ao autor grandes excursões. Porém, elas acontecem, já mais estreitas no deslocamento das paisagens, cada vez mais ao rés do chão, como o narrador afirma. Vamos pela «catástrofe das pequenas coisas» que já foram grandes. O que metamorfoseou a sua dimensão? Quase sempre um ecrã. O transparente vidro dá-nos a conhecer o que acontece num deserto onde começaram as línguas e a humanidade: degolam-se homens como se degolam cabras. Para as máquinas, para o mundo. Dar a ver o sangue é apenas o prolongamento de uma catástrofe maior que germina há muito no corpo-dentro do homem. Há outros nomes para isso? Há: a desconfiança, o medo, a fome e o último cadáver a apodrecer numa praia do Mediterrâneo ou do mar Egeu. Vamos de uma violência antiga às mais recentes. A mesma linha de união. Só que agora o ecrã distrai-nos e tinge de cor fílmica as imagens. Os mortos reaparecem em todos os lados, temos porém «um ecrã que podemos desligar quando quisermos», mas não deixamos de ser «todos jazigos». Já não estamos à espera que aconteça qualquer coisa, ela está a acontecer. Só que as mediações reencaminham-nos para outro lugar que é possível encher com outra linguagem. Arranjamos a que mais nos convém, a mais distraída, a mais superficial, a que torna os vivos e as situações apenas aspectos, «esboços», como afirma o narrador. O som, porém, renova a densidade da vida. Parece ser o elemento que ainda une todos os fragmentos, que os cola, e que dá dimensão ao que, estando vivo, se movimenta. Existir tornou-se difícil. De um fim-de-semana em Varsóvia ou em Munique; do cemitério do Holocausto a uma viagem pela Baviera; de uma exposição de fotografias aos ecrãs televisivos, o que sobra neste livro parece resumido na paradoxal palavra «Advento». Mas «advento de quê», pergunta-se no livro. Advento é o tempo da espera e, por isso, da esperança, um tempo de alegria em relação ao devir. O que advém deveria ser de paz, mas não é. O que está à espera é já a extensão futura da monstruosidade, o tempo por vir do estágio em crisálida. Pode haver retorno a outro tempo? O narrador aponta uma ou outra paisagem, a fina espessura do tempo com a qual é possível percorrer memórias, ganhar afectos, e regressar de rosto aberto ao gamboeiro que salva o dia.