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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

06 outubro, 2006

A FUNDAÇÃO, DE PEDRO CABRITA REIS


Fui ver a instalação «Fundação» de Pedro Cabrita Reis que ocupa a grande sala de exposições do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. Uma plataforma térrea ocupa o centro da sala. Mais à frente, um conjunto de velhas estantes, cheias de pó, onde a minha filha digitou o seu nome que, presumo, também irá ser coberto pela poeira fina dos dias, a poeira do tempo e dos anjos. Aquilo que a minha filha fez é da vontade de todos os que visitam esta instalação: caminhar na plataforma iluminada; trepar à parede laranja; destruir mais um pedaço do muro em tijolo, concebido como as sobras de uma obra que nunca avançou, ou que se ergueu noutro lado, que ficou por ali como o rastro de um urbanismo em constante deterioração. Apetece pôr livros nas estantes vazias; fichas de leitura nos velhos arquivadores metálicos; fundir lâmpadas que parecem ser – numa visão ciclópica - o click da obra de arte, legitimada pelo artista e pela instituição («o que eu faço? – Arte. «O que expomos?». – Arte).
Apenas um senão: não é permitido interagir com nenhuma parte da instalação. Há seguranças que nos reprimem com o olhar esse desejo (também não perguntei). Esta instalação de Cabrita Reis, que não me interessa interrogar esteticamente, deveria ser um caos maior no seu fim (um caos devir, diariamente), pois a sua morte foi antecipada, é contemporânea do seu nascimento (em certos aspectos o mesmo se passa com todos os seres) e, por esta razão, não basta que seja o tempo a morrer nela, nem o espaço a conformá-la (enformá-la). A estas condições devemos juntar a turba humana em visita, o corpo de quem vê a morte à sua frente e nada pode fazer para contrariar o destino inexorável da obra: a lixeira de detritos sólidos urbanos.
Enquanto antecipávamos esse destino, que lhe está marcado na «face», éramos felizes e deus. Talvez em nós o fim desse quadro geral cultural se cumprisse. Assim como está não, pois basta descer alguns degraus (creio que alguns críticos se esqueceram dos espaços laterais desnivelados ao afirmarem que o museu está vazio) para nos depararmos com obras de arte que fazem parte da colecção permanente do Centro e, quando a visitei, também pude ver, mais acima, a excelente mostra do fotógrafo britânico Craigie Horsfield. Todos ficamos perdidos. Deveriam ter retirado todas as obras que nos levam ao esquecimento e deixar-nos entrar nesse reino da ilusão de Cabrita Reis. Assim não sendo um espectro «kafkiano» impera. E todo o espectro legitima a destruição de qualquer coisa. Assim ficamos muito longe, com sede, quando o oásis parecia tão perto. Contra a metáfora da ordenação, a que sucumbe toda a geografia e acção humanas, apenas a nossa destruição tinha sentido.
Chegado aqui não estou sozinho. Ao inscrever o seu nome no pó das estantes, também a minha filha sentiu isso. Nesta instalação nós deveríamos ser os portadores de um vírus, contaminando todo o material.