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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

13 maio, 2012

UMA POSSÍVEL HABITAÇÃO

O livro Barro (Relógio d'Água, 2012) é na obra de Rui Nunes um elemento singular. A palavra «barro» que escolheu para título reflecte essa singularidade: por um lado é matéria-prima, arquétipo narrativo que «enforma» alguns dos seus livros; por outro é matéria autobiográfica, remetendo para o avô oleiro. O livro compõe-se assim em duas vertentes: a primeira dá-nos conta dos principais temas que constituem a obra já vasta deste autor (o primeiro livro, «As Margens», é de 1968); a segunda acrescenta-lhe as suas memórias, algumas delas inscritas noutros livros do autor. Este trabalho é feito num cerzimento metódico, unindo fios dispersos, unindo tempos e palavras que lhe são elementares. Assim se faz a literatura.


Um dos temas recorrentes na obra de Rui Nunes é a noção de pátria, agora identificadas: duas da infância, três do homem adulto. Pátrias sensíveis é do que falamos. A primeira é terra e casa, na Beira Baixa, que vem a nós sob uma luz de verão, intensa, que coagula no limiar e torna escura a habitação. Por isso o campo e a deambulação. Enchem as páginas desta pátria, bichos, pó de barro, chão e brincadeiras. E nelas os sentidos projectam-se até aos mais pequenos movimentos e segredos.

Depois da cegueira da luz, ao rés do chão, a outra pátria tem uma brisa marítima, atlântica, lá para os lados de Setúbal. Aqui tudo é diferente: é o mar que explode de vida e enche de luz a habitação. Temos depois mais três pátrias: a de Wachau no Outono, onde se vê, a partir do Danúbio, os restos de uma civilização e «um rio perdido entre a nascente e a foz». Mais a norte Kirkenes, terra vertical sobre o mar, um arrepio profundo. E, por último, a que defende uma outra noção de pátria para os homens: uma pátria sem território apenas corpo, nómada, com o nome próprio de «Viagem».

Este livro está organizado como se fosse um livro de cânticos, aqui e ali intercalados por um refrão. Para decorar, conforme os escritos mais antigos, os primeiros. E como canção, a escrita imprime uma determinada velocidade, ajudada pela versificação. A matéria é, como vimos, a vida; pontos de luz que se unem vindos do passado e se aconchegam no presente que tem sempre uma palavra a dizer ou a acrescentar um hálito de tristeza. Há nesta matéria, substância suficiente para uma definição autoral de escrita e literatura.

O «Faça-se» é aqui não a mediação «ad-hoc» mas a margem da língua que ainda toca no mundo: uma margem antiga, primégina, quando a linguagem quis ser a ponte entre o que é humano e a perdida physis. Se a linguagem primeiro e depois a escrita afastaram o homem da sua natureza, é possível ainda encontrar nesta língua de Rui Nunes um uso em criação e não apenas em mediação. É isso que deve fazer a literatura: encontrar essa margem de contacto, na linguagem, entre coisa humana e natural: «todas as palavras cortam, à nascença. Por isso, / obrigá-las continuamente a renascer, / embora seja também contra nós que renascem.» É necessário, por isso, arruinar a sintaxe, antes que palavras «inventadas» se interponham e tornem insignificante a língua e a vida. Talvez «o fim de qualquer escrita seja a sua destruição». E por esta destruição se destroem também palavras inventadas sobre a ruína, como «deus».

Nunca se sabe o lugar de contacto, nem nunca podemos regressar pelo mesmo caminho. Não há sinais para o retorno. Nesse lugar pode erguer-se sempre uma habitação, mas precária, radicalmente humana, mas sempre pobre: «e dessa unidade tão débil, da veemência dessa pobreza, se fez, se faz, um texto.

Sem pátria. Sem poder.

Quase sem nome.»

Sinto-me mais vertical com livros assim.

El Peine del Viento, Eduardo Chillida, em San Sebastian


05 maio, 2012

Orquídea

A única planta que tenho em casa é uma orquídea. E todos os anos em meados de Abril o verde mancha-se de lilás. Este ano nasceram-lhe cinco bonitas flores. Todos os anos parece haver mais uma. Depois é vê-las todos os dias quando chego a casa. Mas em cada três dias cai uma flor. E hoje, dia 5 de Maio, caiu a última que não guardei. E eu fiquei a olhar aquela haste que queria encher o mundo, a ficar cinzenta e a pensar murchar. E a pergunta que faço é: o que seremos - eu e planta - daqui a um ano, quando a planta se lembrar de ser flor outra vez?