Etiquetas

Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

18 outubro, 2008

O Corpo Táctil


Herberto Helder

A Faca Não Corta O Fogo

Assírio & Alvim, 2008

(Capa com pintura de Ilda David)


Primeiro aparece a cabeça, luminosa entre as mãos. Deixa ver-se, entreaberta, um pouco da boca. Já de há muito que assim é. É da cabeça incendiada que irradia a luz e o fogo para os membros. Sabemos, em partes que nos são dadas, o que está por detrás desta misteriosa «aura» (não devia usar estas palavras) que se ouve e vê a uma grande distância: é a força de um corpo que encontrou uma língua quando procurava a carne. Mas a voz não se deixa ficar. Vai atrás, esgravatando os materiais (elementos priméginos), sujando e sugando o sopro do que permanece vivo mesmo que pareça morto.
Tudo leva muito tempo a amadurecer: é preciso primeiro que não se afaste a luz; que ela incida inteira sobre os objectos (ou os frutos). Depois que surja entre o poeta e eles uma penumbra tensa, convertida em língua (podia ser outra coisa, mas é a linguagem que o homem tem mais à boca). E depois deixe-se arrefecer. Tudo é demasiado fogo, demasiado incêndio: o fundamento foi incendiado por um dedo abrasivo (divino?). Por isso também o que releva e se revela, ganhando visibilidade, é abrasivo pois ao fogo lento ficou exposto. Só no fim uma voz / sobre a voz universal de outra boca.
Assim o tempo é sempre outro. Não se sabe donde emerge, de que época, de que história, de que epifania mas faz-se aparição em metamorfose. Vem de um deserto ao longe, de um lugar ainda não achado, onde os homens se vêm pela noite dentro e ouvem-se falar do acontecido. Só deus a ter existido teve uma linguagem igual à destes homens: falava e os «nascidos» cresciam na sua boca (deus era o espaço, e nada mais havia fora dele). Um dia deve ter-se distraído e no segundo seguinte deixou de existir. E a sua tradição permaneceu nos nascidos que o ouviam. Pode ter sido assim. E à volta dos poços de água (minas incandescentes e subterrâneas) falavam de amor, juntando palavra a palavra até ao rosto, ao timbre certo: uma língua sempre «arcaica». Sopravam-se nas bocas o inédito (o vulgo, o pouco, o inesperado); e quando tudo se cala, mesmo a noite e os que a habitam, espera-se Deus: fala-se (ou escreve-se) à espera de deus por estas paragens.
Em tudo há magia e o poeta descobre-a nas pequenas cenas do quotidiano, porque mesmo aí há uma habitação para a eternidade, quando se torna «extraordinário» e combustível (Deus funciona na sua glória electrónica). Há uma abertura para esse lugar já deserto a esta hora do século. As bocas que antes contavam encheram-se de areia, ganharam o vento mas ainda se podem ouvir algumas palavras, sons, restos com que o artesão compõe o poema inteiro na sua oficina. Redivivo. É esta a palavra. Uma obra inteira, na mesma língua, na mesma estrutura sonora e ocular, para fundar um poema e trazer de volta um mundo.
O lugar e a língua de um homem, juntos e voltados para um futuro,
abrupto termo dito último pesado poema do mundo.

09 outubro, 2008

Le Clézio

O autor de um livro aos 23 anos chamado «Les Procès Verbal*» (não traduzido) e de duas obras maiores da literatura francesa, DESERTO (antecipação notável do que hoje o Sul da Europa vive com a imigração ilegal, com tradução magnífica de Fernanda Botelho, D.Quixote, 1986) e Índio Branco (tradução de Júlio Henriques, Fenda, 1988) é o novo Nobel da Literatura.
* Correcção: existe tradução deste livro com o título O Processo de Adão Pollo, Ed.Europa-América, 2008, Trad. de Manuel Villaverde Cabral