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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

10 abril, 2011

Amigos: Deixo aqui um convite para o lançamento do meu livro (O Mundo é uma Paisagem Devastada pela Harmonia – [ensaio sobre o ruído e por natureza o som]. Lisboa: Vega, 2011), com apresentação do prof. José Gomes Pinto, a ter lugar no dia 15 de Abril, pelas 17 horas, no Edifício Q, sala Q.2.3 (auditório), da Universidade Lusófona, ao Campo Grande. Espero a vossa presença.

05 abril, 2011

O Desastre Épico



A Mão do Oleiro

Rui Nunes

Relógio d’Água, 2011


Este é o novo livro de Rui Nunes. E nele descobrimos alguns dos núcleos narrativos que já tínhamos encontrado em «Os Olhos de Himmler» (2009). Este livro não escapa a um corte profundo com o que sempre consideramos romance, conto ou poesia: há uma hibridez de géneros que atinge a linguagem do autor. Para além desta hibridez, a escrita organizada como se de um caderno de apontamentos se tratasse, rompe com os códigos da linearidade e obriga o seu leitor a constituir diferentes camadas de sentido, que partem do modelo tradicional da ficção à apresentação de memórias, de superfícies em deambulação a processos poéticos que emergem da impressão do real no narrador. Organizado sem uma distinção geral de lugares e tempos, como se o mesmo corpo (mesmo narrativo) pudesse convocar o que foi e o que é, a leitura faz-se inteira no percurso de cada linha. E em cada linha nasce um caudal significativo donde se pode ver a literatura em construção, mas sem andaimes nem rede. Em cerca de 70 páginas, Rui Nunes convoca para o seu exercício um pretérito e um presente, as figuras de um mal geral, uma paisagem luminosa e sonora mas contaminada pelas diferentes faces do humano e, por fim, as palavras possíveis do que ainda pode ser descrito ou nomeado sempre em convulsão, manchado que está por palavras herdeiras do que desde a origem está contaminado pelo desastre épico reduzido aqui ao essencial e contemporâneo. Desde as primeiras obras que Rui Nunes seguiu o curso literário mais inovador do século XX, o que recusa a prosa ou o romance como meio de informação e entretenimento e dá abrigo a uma experiência na linguagem a partir do vivido e do horizonte da morte.

Há também uma criança que anda de um tempo a outro, de um passado para um presente. Sem nome. O passado é mais largo que o presente. Este estreita-se cada vez mais, em cada palavra, na própria recusa de constituir uma descrição que possibilite ao leitor algum ponto de apoio ou sustentação. Temos alguns mas funcionam como metástases do mal que povoa o tempo, qualquer que seja. Essa criança sem nome cresce em muitos lugares, alguns bem conhecidos, outros nem tanto. E esta criança torna-se homem nesses lugares e, nesta acção, contamina-os com o seu passado. Não os pode ver de outro modo. E o que não se deixa manchar é o que escapa ao humano: o som, as sombras, a luz, o silêncio e o povoamento destes interstícios no espaço e no tempo, isto é, a natureza eterna mesmo que apocalíptica. Bem, a criança cresce em alguns lugares identificados, de Dresden ao Médio Oriente, de um interior rural às grandes cidades, e observa e diz o que passa despercebido à maioria dos mortais. E com esta observação distende também a rugosidade de um passado sobre os erros do presente, alheio ao rancor mas não há angústia e à luz baça do dia. É um livro sobre a existência, ou melhor, como nos tornamos terra com outra terra, e bichos com outros bichos, mesmo aqueles que não se observam a olho nu.

O rapaz veio de um lugar de silvas, de uma escola escura onde as palavras se comiam umas às outras, ou então emudeciam. Por isso o rapaz não tem nome próprio. Ficou no seu passado. E ao tentar lembrar-se dele para o dizer aos que lho perguntam, fica mais anónimo. E surge sempre outro: deus. O seu nome e Deus são o que ele tem mais próximo de uma recordação, da ternura (pg. 70). Sem nome que se pronuncie, que seja som, fica apenas com o do Oleiro, o que desfaz as figuras que cria e deixa o pó da destruição pelo mundo, mesmo sobre os móveis da casa: «faça-se. Faça-se o tempo: / coisa a coisa Deus repete a morte. / E em cada nome, esperamos a explosão, / esse povoamento de restos,» (pg.18). Deus é uma recordação de um domingo, de uma cozinha a mexer-se erodida pelos sons que vinham dos campos. E muito mais. É um nome que torna o corpo um «exercício do medo» (pg.11). Um medo que começou na infância que teve que abandonar para se fazer à vida, prostituir-se. E com esta acção ficou mais anónimo mas também mais livre. Esta acção reconstitui e identifica o que o autor chama de «pátria»: o escárnio do outro e o seu poder são apenas formas de libertação, ou de estar perante a face do mal que tudo contamina. Aliás, dois nomes que aparecem são dessa face: Heinrich Himmler e Reinhardt Haydrich. A palavra que é o seu nome não poderia fazer parte desta semântica que aprofunda a língua e a torna maléfica, que serve a morte e a devoração. Dizê-lo seria apagar o que é o mundo, um mundo onde a necessidade do organismo a dizer-se «destrói a palavra harmoniosa» da natureza (pg.14).

Esta obra, como outras de Rui Nunes, é dura, esvazia com a escrita o que se entende por humanidade e repete esse vazio em cada palavra. A repetição não é apenas para revelar a verdade do que enuncia mas para ir mais além, à violência que é toda a repetição do próprio eco semântico. Parar para apenas ouvir. Apenas. Nada mais de alguma coisa humana entre os sentidos e o mundo. Apenas o silêncio que se revela na observação do mundo, da sua substância: «há um silêncio para a morte, há um silêncio para o medo, há um silêncio para o amor, há um silêncio para cada objecto que as mãos agarram, / para cada luz, / cor, / tempo. / O silêncio é o nome / único / das coisas» (pg.49). Aqui o silêncio não é uma construção, a falta de som ou a sua anulação, aqui o silêncio é a queda do homem para dentro de si e do mundo: uma única queda. E esta queda traz consigo novas formas de escuta e a vida que a «lupa» descobre. E também uma vida, não muito larga à semelhança de um grande delta que aporta à maturidade ou à velhice, mas uma vida muito estreita, quase a sumir-se, quase uma mancha. Por ser mancha alastra e contamina. Vem do mais fundo que o humano tem, da maldade da comunidade, e aflora à superfície do corpo, ao tempo do corpo. E para dar conta deste varrimento efectuado pela mancha, a escrita tem que ser pedra após pedra, letra após letra, para que fiquem apenas palavras libertas que dizem o mundo. Poucas, porém. Um início sempre, um regresso ao lugar de partida já sem nome e às acções desse tempo. Daí o nome de Cy Twombly, esse artista plástico norte-americano que fez da escrita, à revelia das principais correntes da década de cinquenta do século XX, a mancha da sua pintura: palavras, palavras inteiras de uma memória antiga; palavras inteiras ressequidas quando chegam aos olhos; palavras da criação no momento em que Deus disse «faça-se», idêntico verbo na mão criativa.

Como sempre acontece nos livros de Rui Nunes, há uma descida vertiginosa aos infernos que nos povoam, a uma lama que vem do passado e aporta no presente e que fecha portas a muitos futuros radiosos. No entanto, não há na obra de Rui Nunes um fechamento irreversível a um devir. Há na sua literatura, a que a portuguesa deve agradecer por ter entre os seus oficiantes alguém que aprofunda a língua em que falamos e na qual nos constituímos como comunidade, pontos luminosos que nos fazem bem, já que nos colocam perante a nossa precariedade (“um corpo é um sítio precário”, pg.68), ou melhor, reflectem o que somos. E, na verdade, a todos os níveis não somos mais do que restos: restos de um oleiro em seu trabalho incansável de despistar o humano, de o tornar errante; restos enquanto pedaços de uma herança que vem de longe; restos de significados precisos que enchem as palavras (todas as palavras têm uma história semântica para contar, «todas têm para trás um longo percurso» pg.67) e contaminam o que digo com elas; restos de uma explosão dos aspectos; restos de uma luz que na sua intensidade cega; e, por fim, restos de um corpo em queda. O que Rui Nunes nos diz é que somos este conjunto desde que nascemos e que, no tempo da nossa duração, se vai purificando até à dor e ao sofrimento. «Quem não sofreu que atire a primeira pedra. E todos o deixaram. Só. A escrever na terra. A palavra. Aquela. Que não será lida. O princípio. Ou. O recomeço», pg.61.