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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

30 novembro, 2008

A pensar em Duchamp ou um equívoco funcional


Muñoz e Wool




A Prisão de Muñoz

Fomos ver de uma assentada duas exposições a Serralves: as de Juan Muñoz e Christopher Wool. Conhecia há muito a obra do artista espanhol, recentemente falecido. Olho para ela desde, talvez, a década de oitenta. Não conhecia, no entanto, um tríptico pintura ali exposto que se me revelou fundamental para entender a obra tridimensional: Desenhos de Costas. Num destes quadros um torso levanta-se do negro como um molde táctil, numa dimensão muscular que lhe dá vida, escondendo-se sob a tinta negra a cabeça e os membros.


Todos os problemas que Muñoz levanta nas relações do corpo com o espaço permanecem em nós quando saimos da sala: fechadas sobre si próprias (e um espelho em que a figura se possa mirar apenas amplia essa prisão), as figuras debatem-se contra a luz natural e as coordenadas do seu lugar físico, ora pela verticalidade (como no Anão com 3 Colunas), ora pela horizontalidade (como na instalação O Ponto). E depois há o derrame de uma sobre a outra num desenho de chão com figura ao fundo, como bibelot numa parede (que aqui reproduzo): a sala balouça connosco dentro e só a pequena escultura presencia esta onda.




Wool (1955, Chicago)


Uma das telas diz-se, pretende de nós linguagem, uma proto-literatura que a salve.


Limpar. É a primeira palavra que se impõe. Limpar o quê? Pergunta-se. Os vestígios. Do pó, do sujo, do que desarmoniza. Só que a limpeza dos vestígios deixa sempre uma mancha. Limpar então os vestígios de alguma técnica humana é aqui libertar o quadro de uma pintura e, simultaneamente, revelar uma mancha que ficará para sempre sobre a outra que é a da pintura. Então, a limpeza, com um pano por exemplo, deixa para além da mancha habitual o enigma da harmonia eliminada, pois não desejada. Estamos já noutro caminho, não o da pintura mas o que sucede à pintura, unidos num determinado espaço e no mesmo dispositivo.


E depois, nalgumas telas, oculto que parece estar o outro trabalho do artista (o primeiro), um traço de tinta ilude a própria mancha nos olhos dos observadores.


Tem um fim à vista este percurso pctórico.

25 novembro, 2008


Título: Myra

Autor: Maria Velho da Costa

Editora: Assírio & Alvim, 2008


Myra é um romance sobre uma adolescente russa perdida no Portugal profundo. Pretendia chegar à sua pátria mas ficou-se no Porto. Aspecto interessante: a mudança de nome (tem vários ao longo da narrativa) é também uma forma de fazer um destino e um passado.

Este romance tem, no entanto, uma ausência que me marcou: embora luminoso, com cenas marcantes, li-o como um filme mudo. Não há som. Os cães ladram mas não se ouvem; as armas são mudas mesmo no disparo. Morre-se sem ruído (nenhum estampido), vê-se apenas o sangue a apodrecer mas nenhum som. Nasce-se sem ruído, como um acidente afastado da narrativa que o leitor observa de longe. Mesmo os «dizeres» soltam-se da língua para um dentro, para outra voz que, às vezes, é a do leitor. Todas as vozes constroem-se sobre esta mudez.

A história de Myra é uma história mental, telepática.