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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

21 fevereiro, 2010

JUDITH BARRY


Body Without Limits

Há três momentos que os derivados do cinema do século XIX utilizam para uma distorção da história do meio e seus artefactos.
Primeiro: a sincronização, na década de 20 do século passado, de imagem e som. A realidade tinha que deixar de ser ímpar e passar a haver um outro que com ela competisse em afecção e destino. O trabalho realizado na Europa e nos EUA até àquele momento daria inúmeras instalações que antecipam o trabalho realizado por alguns artistas contemporâneos em obras de multimédia (sobretudo, vídeo e som). O segundo momento é a alteração da noção da matriz do real quando comparada com a sua representação: era necessário voltar à encruzilhada e seguir outro caminho. A realidade não se pode comparar à sua representação, perdida que está a afecção pelo que é ímpar (pela natureza, por exemplo). Para tudo tem que haver linguagem que una a coisa humana à coisa natural. Mas isto não é importante para o que o humano faz no seu círculo. Era então necessário deixar a reprodução e passar à produção: é este o terceiro momento. É claro que durante muitos anos ainda pensámos o produto na sua relação com um objecto bem real (mesmo uma fonte sonora) que se lhe assemelhasse. Mas este reenvio para o objecto (que é bem «audível» nos sons e vozes da rádio) foi, aos poucos, sendo erodido. O produto da criação é agora um território que só pode ser visto e ouvido a partir da distância teorética e da explicação no horizonte do sujeito que estabeleceu voluntariamente um contacto. O que aqui é «legível» é sempre uma antecipação do artista, um trabalho de pesquisa sobre a nossa percepção futura e o modo de a impor. Só que o objecto, o ponto de vista e o espectador-escutante são a criação, num determinado espaço e tempo, de uma percepção muito própria que torna qualquer obra muito individual.
É este plasma metafórico que sentimos quando acompanhamos a obra de Judith Barry( EUA, 1954), Body without Limits, em exposição no CCB.
Merece uma visita atenta para repensarmos, in loco, as formas que os meios vêm impondo às imagens e aos sons.

09 fevereiro, 2010

O OLHO e a PINTURA



Os homens reunidos na caverna começaram por achar estranhos aqueles traços na pedra. Porque lhe eram singulares e como eles em diáspora. Mas o autor quis que fossem ali gravadas cenas da vida quotidiana. E ele nada achou de estranho neste ofício e no que fazia. Apenas os outros, os que estavam atrás e lhe admiravam a perícia, ficaram encantados com a solução encontrada para o passado da visão. A contínua representação do mundo pela visão, através do braço e mão do artista ou do olho dos espectadores, é apenas a forma com que o humano consegue identificar o passado e constituir fora da visão a memória do que lhe escapa: um sonho fora de si, foi isto que aquela cabeça na caverna pensou depois de admirar o que tinha feito. E depois, quando passou com a mão pelos traços soube que esse sonho estava ali, bem como uma história. Os outros apenas se arrepiaram com o traçado que o sílex fez. Mas alguns acharam «aquilo» bonito. Ver e fazer são assim tarefas distintas na arte: o espanto de um lado, o espírito do olho no outro.
Li num jovem poeta espanhol, agora traduzido para português [Mariano Peyrou, O Discurso Opcional Obrigatório, Trad. de Manuel de Freitas com prefácio de José Ángel Cilleruello, Averno, 2009], uma outra forma de dizer o que atrás expus:

A maior aventura é levantarmo-nos
e desenhar um ser humano nas paredes
da caverna, tocar com as novas mãos
a diferença entre objecto e a sua
representação, derramar e beber a
criação do conceito.

O Resto é Ruído


à Escuta do Século XX
Alex Ross
Tradução de Mário César d'Abreu
Casa das Letras, 2009.


A primeira parte deste livro centra-se nas alterações das formas musicais protagonizadas pelos dois principais músicos do início do séc. passado: Mahler e Strauss. Foram os primeiros a sentir na primeira década do século a vibrante actividade nova-iorquina, a electrificação da música e a mistura com a música popular como o ragtime. Mahler e Strauss foram recebidos na América como artistas populares e rapidamente entraram nos circuitos comerciais e nos grandes armazéns americanos. A música erudita misturou-se com o povo. Esta influência americana vai-se revelar também num músico da geração seguinte, Schoenberg.
Ocupa um espaço privilegiado de entendimento deste tempo e da sua música a obra Doutor Fausto de Thomas Mann, feita no seu exílio em LA, numa pequena comunidade que agregava muitos que se opunham ao nazismo, entre eles T. H.Adorno.
Embora demasiado preso às influências da música americana na que se compunha na Europa, o livro estabelece uma galeria de músicos que, de uma maneira ou outra, alteraram para sempre a noção de música no século vinte. E melhor, descreve esse século a partir de todos os sons que rapidamente se incorporaram na música directamente, através da gravação e da reprodução ou pela alteração do naipe de instrumentos clássicos.
O ruído e a electricidade; a alteração da composição e o contágio com a música popular; a noção de corpo, movimento e energia revolucionaram a música do século vinte, tornando-a para sempre inconfundível.
Da reprodução, Alex Ross avança pelas épocas e pelas vidas dos principais compositores para chegar à produção, à síntese e à electrónica.
Um livro a ler para se ouvir melhor o século que passou.