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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

13 maio, 2008

Depois de Primo Levi



Fui capturado pela milícia fascista [...] com 24 anos, nenhuma experiência e uma acentuada inclinação para o castigo. Porque a culpa é enorme no sangue dos nossos avós.
(adaptado de «Se isto é um Homem»)

Eu não estive em Auschwitz

(como Primo Levi).
Os meus pais não são judeus
por isso não sei
por que corre sangue meu
em Auschwitz.

Sempre que vejo o filme
ou aquela velha fotografia
olho-me no espelho
e vejo-me em 80m2
alinhado com cento e vinte pessoas
(quase desconhecidos)
prontas para receberem uma palavra,
uma palavra inteira que os ajude
(ou a deus que delas se perdeu).

Estou de pé junto dos outros.
Ouvimos a cavilha do gás a soltar-se
às mãos daqueles que tinham acabado
de comer galinha frita.
Rola pelo tubo de metal
a nossa vida
o confronto último
com o nosso rosto
nos olhos dos outros:
uma última face.

Nada peço, nenhuma praga.
«Que os vossos filhos vos vejam de frente
a cara:
perscrutem nos vossos olhos
o sangue de todos
os que morreram.
Que todos estejam no vosso rosto».

11 maio, 2008

CERZIR




Quarteto para as Próximas Chuvas
João Rui de Sousa
Lisboa, D.Quixote, 2008

É nesses dias de sol (de sul)
que eu trabalho

Mesmo quando apenas sombras
crescem. E a dor é já um sal
irrecusável
(Ossos do Oficio, pg.130)

É bom ter autores que nos acompanham há muito. São aqueles a que não ficamos indiferentes quando novo livro sai.
Este novo livro de João Rui de Sousa (n.1938), que sempre nos surpreende, é dividido em quatro capítulos: Algumas Asserções sobre o Real; Oscilações e Penumbra; Fulgurações e O Rosto (o Rasto) da Escrita.
Depois de Lavra e Pousio (D.Quixote, 2005) este livro traz-nos um poeta renovado em circulação por uma realidade cendrada. O poema que abre o livro “Tempo e Transformação” é do melhor que tenho lido nos últimos tempos, dando mais uma vez a conhecer a mestria de João Rui de Sousa.
Este livro é um canto renovado sobre o real. E, simultaneamente, a demonstração que é sobre a neve que imprimimos os nossos passos, o sulco do devir na observação dos outros. Mesmo que JRS troque neve por granizo é sempre a mesma coisa: é no devir líquido e terra que «floresce / o tambor dos sinais, o rodar / das palavras, o estampido / dos dias.» (pg.29). E há a noite onde todo o caminho se metamorfoseia num «traço escuro que ressoa» (pg.37) em alguém que se mostra extenuado. É uma poesia feita num curso entre o campo e a cidade. Esta mostrando uma solidão que dilacera, e só às vezes percorrida pelo azul, e o campo mostrando a vida a crescer nas margens das águas, em plantas que mostram na claridade o seu viço. Permanece nestes poemas uma inquirição constante, espiritual, sobre a origem e o rumo da natureza. Esta que na emergência dos seus exemplares (árvores, bichos, plantas, etc.) nada nos pode dizer do seu mistério a haver que também será o nosso. Mas há nesta paisagem algo novo, aéreo, ave putrefacta que por vezes é sono outras poesia, sempre esvoaçando a caminho de um futuro que é «frio e luar» (pg.52), hesitando com medo de um voo em falso. E nesse sono esconde-se o homem e a sua linguagem (“ovo de palavras”) que se transforma «no pouco a pouco dos milénios» (pg.13) e nele tudo é transformável.
A noite é neste livro de JRS o lugar da transformação e da clarividência. Onde a morte circula vinda da luz a caminho da luz; vinda do pó a caminho da cinza, esta que é o «sábio signo dele» (pg.65) e que se evidencia num olhar sem resposta que é a morte. Desta demanda em torno de quem se ama numa idade tardia parece ter surgido o poema Diálogo.
E por último reúnem-se palavra e natureza. E desta reunião surge uma linguagem que conserva o cômputo geral das qualidades das substâncias, limitada pelo nascimento e pela morte das mesmas. Há neste ofício de reparação de algum hiato ou fenda, que o poeta persegue, sem o saber, através do poema, um homem que quer falar; que deseja, sobretudo, cerzir o lugar (vazio) à sua circunstância com o que de melhor tem para dar às palavras (ele que é língua e natureza). E assim, inesperadamente, a linguagem irrompe «rasgando a pele, a roupagem / e o próprio músculo da realidade» (pág.126), quebrando algum encanto que ainda possa haver no coração dos mortais. Por esta razão dá o poeta um «conselho aos crentes»: que não se deixem envolver pela dor que o verso reporta; «não vos deixeis […] cair na tentação da poesia!» (pág.141).
UM LIVRO A LER.