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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

28 fevereiro, 2006

Olhei rios a correr da foz para a nascente


Recapitulação, de António Salvado
Ed. «Estudos de Castelo Branco»
2005

Atravessa estes poemas uma língua funda, que vem dos mesmos tempos da infância, e que já pouco se ouve. Há palavras que ressoam na minha memória. Para algumas preciso já de uma guia. E depois é vê-las a participarem nas longas estações das beiras, a comerem a terra que já ninguém quer, exceptuando aqueles (como António Salvado) que fizeram do nosso interior a sua pátria sensível, a terra mátria. Também eu sabia, pela estrada velha, que depois de Ródão era a minha pátria que cheirava. Passam longe as novas rodovias, longe da pobreza e do silêncio com que se fazem ainda muitos homens. Os poemas de António Salvado não tratam apenas desse afecto teimoso que um dia o fez agarrar-se àquelas terras, falam também do sofrer do dia e do seu peso, num misto de alegria e dissabor. Mas nalguns, afastam-se as palavras dolorosas, para darem o lugar àquelas que tratam o amor por tu: é a sua voz secreta peregrina «que ora se veste de azul ora de negro»; ora contemplando a Luz, ora a via que será de pez «onde um anjo caído encolhe as asas».
Mestre no soneto (como é evidente no seu livro «Recapitulação»), enlaçam-me os seus versos em coisas bem antigas e bem próximas, como se o tempo, ou melhor, a memória, fosse a faculdade que resta ao poeta para dizer a vida e o que por este lado bem humano prende o homem à terra: uma voz nua e descoberta / até que o tempo em eco se converta (citação de Luís de Camões, Canção VI, que abre o livro). Não podemos evitar trazer esta voz para a cidade, para que, se possível, amenize este tempo de fragmentos feito, como se ouvíssemos a voz dos que nos precederam e nos ensinaram a escutar a água, a lançar a semente à terra, a vê-la ser planta e flor onde poisávamos os calções quando era Verão e ao corpo apetecia nadar nas ribeiras que descem da Gardunha.
Há também na sua voz um grão de dor, contra a apatia, contra a vaidade, contra o efémero (que a notícia da ida e volta potencia) e, sobretudo, a relevância do desejo que tarda a cumprir-se: «deixar que as impurezas se consumam / e que outra vez as águas raiem» lá no Interior. Há também na sua voz, em versos, a impotência de nada poder fazer contra este tempo, não só aquele que apenas alguns sublima, injustamente, mas do Outono que lhe caiu num corpo por «cicatrizes fundas» percorrido.
Só que nestes poemas, e sobre aquele tempo, ergue-se um bater de asas no restolho e depois um silêncio que nos sorve para o tempo já distante em que nos perdíamos nas «ravinas dos pragais», procurando entre as pedras «um sinal d’ervas raras». E com estes poemas aí nos escondemos do que vem depois e é já presente mas que nós, propositadamente, ignoramos, pois «pela língua ainda vive / uma doçura que a memória guarda».
Ler António Salvado é voltar àquele tempo que é meu, bem em bulício na infância; mas é também senti-lo coberto por outra língua que o poeta usa para o resgatar e mo ceder inteiro.
(O autor publicou também, na mesma editora e em 2005, um conjunto de textos em prosa a que deu o nome Modulações).

22 fevereiro, 2006

A INTERVENÇÃO CULTURAL de Thomas Hirschhorn


(notas à exposição em Serralves-Porto)
As diferentes intervenções deste artista suíço no espaço público dedicadas, sobretudo, a escritores, filósofos e artistas, são sempre instalações montadas para um olhar que as vê desmoronar-se. A precariedade é qualidade essencial da obra de Thomas Hirschhorn (TH) que não quer ser rotulado de trabalhador social mas de artista, legitimando-se a si e à obra.
Aquela qualidade, por paradoxal que pareça, está presa a um conjunto de obras de arte que se constituíram para um Espaço Público que, no entender do artista, se oferece e obriga a um determinado conjunto de qualidades, insistindo na colaboração entre o espaço e a obra. O paradoxal reside no facto de sempre considerarmos a obra do espaço público, ao contrário do museu ou de uma galeria, como obra com uma duração, que as obras de Hirschhorn não têm. Este engagement da obra ao espaço reflecte uma posição bem clara do artista em toda a produção: há uma acção política na obra de arte. E para além desta acção (repare-se num quadro ético e moral constante como substrato da sua obra) há uma conformação da obra a um melhor entendimento do mundo: a arte é uma ferramenta para entender o mundo. Está assim traçado um quadro geral crítico da obra deste suíço. Se por um lado rejeita ser um trabalhador social, considerando-se apenas artista, por outro lado conforma a sua obra a um espaço público, impregnando-a de qualidades (a própria matéria prima tem estas qualidades) que lhe são adversas: o descontrolo, a assimetria, a falha e, com o tempo, a queda. Tudo na obra deste artista é, então, precário (Museu Precário Albinet).
A ideia de monumento, ou melhor, a noção clássica de monumento, é bombardeada pela obra de TH. A ideia geral deste artista é fazer, a partir da obra que o tenha marcado, um monumento precário. Na construção destes monumentos (dedicados a filósofos como Deleuze, Spinoza, Gramsci ou Bataille) [e quiosques (dedicados a escritores como Robert Walser e Ingeborg Bachmann) e altares (dedicados a escritores ou artistas como Mondrian e Raymond Carver] persiste destruída a formulação original. TH diz que os seus monumentos são também construídos por duas partes: a parte clássica, o corpo e a forma de quem é representado e uma parte informativa que contém a informação possível: livros, dados biográficos, vídeos, etc. Esta última parte pode ser entendida como o mapeamento parcial da acção do autor: dá a ver aos outros uma rede de afinidades electivas na relação do artista com outro artista e o seu pensar. Lembro-me de ver grandes quadros em Anschool II, ou em cima de mesas, desenhados com o traçado desses afectos, comportando fotografias, capas de livros, dados biográficos, etc, ie, relações. TH relata mesmo, sobre o Monumento Bataille, que pediu a Christophe Fiat, que lhe explicasse a obra deste escritor francês, encorajando-o a fazer um mapa da obra de Bataille. O problema da relação é tão importante em TH que obriga a arte, como vimos, a conformar-se à rede de relações estabelecidas pelo espaço público; e dentro da exposição, qualquer que ela seja, obriga também os autores, e em maior extensão, os seus monumentos, a uma rede de afectos perecíveis que para o artista pretende ser uma difusão da obra do filósofo.
Será?
Esta difusão assemelha-se a qualquer página de publicidade de uma editora ou de divulgação de uma palestra ou conferência. Só que esta notícia o artista desmonta-a no espaço e no tempo de vida do autor e no espaço do objecto artístico. Há apenas esta ideia: divulgação. Se o artista pretende com estes monumentos celebrar um filósofo, não o celebra em reflexão ou pensamento, mas na admiração que sente, colocando-a no centro da precariedade da obra. A morte atinge tudo: dos materiais que usa à admiração. O que perdura e resiste pertence ao espectador ou observador. Essa rede ou rizoma não desenvolve um pensamento crítico sobre o autor ex-posto, mas uma reflexão sobre o efémero. Cremos que TH pensa o contrário como fundamento das suas construções (Cfr. Statement: «Monuments», folha da exposição em Serralves, Fevereiro de 2002).
Afinal o que TH pretende, diz-nos, é afirmar formas: entendo a arte como a afirmação de formas.
E estas formas, sejam elas altares, monumentos ou quiosques, possuem qualidades que podem ser consideradas denominadores comuns: são sobre alguém, obra ou vida, que mantém com o artista uma relação e uma tensão; as construções podem ser deslocalizadas, ie, não interessa o espaço público onde se encontram, embora sofram, na sua forma e disposição alterações na deslocalização; são de duração limitada e, no dizer do artista, a apresentação de alguém não é feita sob o efeito de preocupações estéticas mas em pura energia. Desconhecemos o impacto desta última qualidade na obra de arte de TH, embora diga assiduamente que apenas lhe interessa expressar uma energia.

A rede de altares, monumentos e quiosques perde-se apenas, e de uma forma superficial, não subterrânea, na quantidade de objectos expostos. TH explica que não gosta da arrumação das galerias, museus ou qualquer espaço expositivo. Lembra-se sempre da ordem arquitectónica, por ela de uma casa, e por esta de uma classe social, uma elite. Mais é Mais, expressão que usa para afirmar a importância da quantidade como «facto aritmético e como facto político». Entendemos, mas entramos aqui com o problema do ruído semântico e físico (quando não conseguimos movimentar-nos correctamente pela exposição, como se ela nos obrigasse a um movimento, a uma penetração prevista na exposição, ou a uma negação do movimento aleatório, à deriva como fazemos numa exposição «normal» em que o espaço da circulação é livre para a deriva do corpo e do olhar). Em Anschool II, persistem os dois ruídos. Embora TH retome sempre a ideia que não pretende inundar o espaço e os que vêem, mas ajudar, na quantidade, o «individual a afirmar a sua importância», cremos que a palavra de que foge, submersão, provém da massificação do individual, que pretende, per-si, afirmar-se capaz de ser pensado no colectivo mas não consegue por domínio do ruído semântico das obras (complexificação das interpretações numa rede semântica que não consegue acordar-se para o sentido prioritário) e pelo ruído físico, uma espécie de ruído táctil, que nos torna, enquanto viajantes, cansados e adversos a alguns movimentos obrigatórios.
TH parece ter razão neste impulso pela quantidade e pela individualidade num aspecto: como ele afirma na explicação do seu gosto pela colecção Barnes (os quadros são dispostos por tamanhos e não por tema ou data), o ruído semântico e físico anula muitos dos objectos, fazendo sobressair apenas alguns, que mantém com a linguagem uma tensão, e criam nos que circulam uma espécie de proto-literatura (esta que eu faço aqui, por exemplo): os monumentos, como exemplo, porque nos afectam e criam connosco relações especiais, prolongamentos que somos dessas escolhas dispostas nesse rizoma ou rede.

20 fevereiro, 2006

A METÁFORA DA ILUSÃO


As novas intervenções no espaço de exposição

Todos já nos apercebemos de uma quantidade enorme de artefactos que colocados nas salas de uma exposição de arte contemporânea aí se assomam aos nossos sentidos, afectando-nos, sobretudo, pela interrogação: a coisa parece-nos deslocada, retirada de uma venha estrada, de um velho fontanário, de um corpo que já não existe. Esta imitação, esta mimesis, pretende recriar no espaço de exposição algo que naturalmente se perdeu? Em parte, não. É apenas evocação. Mas esta evocação parece ter um duplo sentido que não é contraditório, pois a sua afirmação como obra de arte preenche-se nesse duplo sentir, que é também um duplo pensar. Enquanto a obra se mostra demasiado estática numa observação directa (e repare-se que este tipo de obras são mais estáticas e, simultaneamente, mais leves que as demais, pintura, escultura, fotografia, etc., o que parece ser contraditório mas iremos ver que não é) ela devolve, através do nosso movimento, uma cinestesia que a elucida parcialmente. Dizemos em parte porque falta algo que está fora dela para se completar. Fora dela, não no sentido moderno do completo estético, mas porque a sua profunda manifestação em nós representa-se numa espécie de transbordo emocional que, ao contrário da maioria das obras de arte, é-lhe condição necessária. Este transbordo só existe se o espectador já experimentou a visão de algo semelhante fora do espaço da exposição, ie, nos objectos ou artefactos com utilidade no mundo. É verdade que, seguindo aqui um preceito heideggeriano, o objecto representado não tem nenhuma utilidade, nem nasceu com nenhuma serventia, quer portanto ser apenas uma obra de arte. Este objectos vivem de uma sucção da memória individual e colectiva, caracterizam-se por novas espécies de metáforas, cujo desvio implica o nosso retorno a uma experiência que nos emociona: é este o transbordo emocional: da nossa experiência para o objecto e nunca ao contrário.

Este tipo de obras de arte vivem mais que outras de relações míticas entre as diferentes estruturas arqueológicas que compõem o homem contemporâneo, ainda não completamente afastado do moderno e das suas afecções espaciais. O que gostamos desta fonte no meio da sala da exposição, não é que ela seja realmente uma fonte, nunca teve essa utilização, mas que faz em nós nascer novamente uma fonte: a fonte que experimentamos num dia quente de Julho. Secas as fontes, desalojadas da sua serventia, ingressaram no espaço da arte, assemelhando-se um pouco, que iremos elucidar, a objectos artísticos etnográficos o que é diferente de serem apenas objectos de etnografia. Aliás, se as obras de que falo fossem expostos num museu etnográfico o transbordo emocional, e o veio estético, eram insuficientes para fazerem delas obras de arte, faltava-lhes a metáfora da ilusão.

Estas obras chocam-nos pelo seu desenraizamento. Esta ideia de choque é bem contemporânea, presa à falta de correspondência com o real. A noção de desenraizamento (a desumanização da arte, ou melhor, a desnaturalização da arte) está preso ao homem urbano do sec.XX como foi bem identificado por Heidegger no seu ensaio «A Origem da Arte» (trad. portuguesa na obra Os Caminhos de Floresta, F.C.G.), em Benjamin no célebre texto «A Obra de arte na era da reprodutibilidade técnica ou em Ortega y Gasset (para citar apenas alguns). Seguimos aqui uma leitura muito interessante de Gianni Vattimo em A Sociedade Transparente, onde conjuga a palavra stoss (de Heidegger) com shock (de Benjamin). A primeira está mais ligada à precariedade humana, à evidência da morte, a esse desenraizamento que é causa de angústia no homem contemporâneo. A palavra shock «é definida por dois aspectos que caracterizámos seguindo as indicações de Benjamin e Heidegger: antes de mais, e fundamentalmente, ela não é mais do que uma mobilidade e hipersensibilidade dos nervos e da inteligência, característica do homem metropolitano. A esta excitabilidade e hipersensibilidade corresponde uma arte já não centrada na obra mas na experiência [...]
A segunda característica que constitui o shock como único resíduo da criatividade na arte da modernidade avançada é aquela que Heidegger pensa sobre a noção de stoss: isto é, o desenraizamento e a oscilação que têm a ver com a angústia e a experiência da mortalidade» (pg.64).
Então, a obra de arte que falamos caracteriza-se, por se centrar, simultaneamente, num objecto e numa experiência irrecuperáveis, cujo desenraizamento e deslocalização constituem no espectador uma metáfora da ilusão, e por ela se faz, parcialmente, a obra.
(a continuar)

14 fevereiro, 2006

O PARAÍSO É JÁ ALI


Todos sabemos que a ciência e a técnica dá uso aos seus artefactos para o bem e para o mal (o século XX está cheio deste anivelamento ético e moral). A tecnologia não escapa a esta rotura de níveis. Mesmo que a invenção fosse concebida para um uso pacífico e como arquivo da memória individual e colectiva (lembremos, nos fins do século XIX, a invenção dos dispositivos técnicos de reprodução de som e imagem), os objectos técnicos começaram por servir a propaganda militar, política e económica e só muito mais tarde incorporaram as qualidades que estiveram na origem da sua invenção.
No sítio que procuramos na Internet para descobrir como montar um aparelho, encontramos com muita facilidade uma janela aberta para um lugar que nos ensina tudo sobre a construção de uma bomba; onde comprar a arma mais sofisticada e como usá-la. É portanto fácil, numa sociedade tecnológica aberta, receber os mesmos inimigos da sociedade tradicional. Só que o alcance parece ser muito distinto. O uso de armas ou outros engenhos de destruição é a derrocada da ideia de socialização e a emergência da ideia radical de individualização que encerra em si uma regra moral singular: é permitido fazer tudo, mesmo matar, desde que a minha moral o aprove e sirva uma ideia.
Theodore Kaczynski com a sua acção terrorista e o seu Manifesto Unabomber, apenas um exemplo, nada mais fez que aceitar como verdadeira aquela regra e cumprir o que ele pensava ser uma espécie de missão (esta palavra tem hoje, mais que nunca uma semântica original e orgânica), idêntica à contida no discurso do fundamentalismo religioso e político, e que desemboca no terrorismo. Desejando destruir os meios de produção tecno-industriais, fez tudo o que estava ao seu alcance para que essa destruição fosse global e irreversível, usando os instrumentos que a própria tecnologia lhe «fornecia» e os mesmos modos de actuação que esses meios realizam e globalizam. Esqueceu-se, porém, que a técnica apenas se pode destruir por duas vias: a primeira por implosão, um vírus maléfico, por exemplo; a segunda, por perder o seu espaço e tempo de uso, por anacronia ou destituição das funções de serventia, tornando-se assim um artefacto silencioso e estático entre as coisas naturais e artísticas, outra espécie de artesanato que avança para além dos museus já dedicados à técnica e à tecnologia.
Mas o olho (que é um fruto) dessa regra moral apaixonou-se por si e nenhum outro mundo ou perspectiva existe: apenas o olho em-paixão-consigo, sem espelho, com um slogan a néon que diz «o paraíso é já ali». E como em todas as paixões, não abundando em espaço e realidade, ao ali, que é o lugar do Paraíso, apenas se pode chegar por atalhos, que se crêem rápidos e eficazes. Para lá desses atalhos o regresso ao mundo natural e primitivo: a utopia que infesta o homem moderno que subjugado em-si, mas pensando ser pelos outros, sem rumo e objectivos, sentiu necessidade de uma afirmação pessoal, uma autonomia e uma liberdade. E esta disposição faz-se hoje, em alguns de entre nós, contra um domínio tecnológico que parece (e isso também é gerador de receio e pânico) não encontrar fronteiras ou etnias, estendendo-se para um espaço virtual por rarefacção do espaço real. Esta extensão começa, afectivamente, no nosso corpo através dos objectos técnicos que usamos e dos programas neles incorporados (para permanecerem eficazes e vivos).
Não é difícil na frustração tomar essa utopia como lugar realizável, mesmo que para tal utilize os atalhos e as regras morais mais inconvenientes. Chegaremos é sempre à conclusão que o desejo da utopia desrealiza-a, transformando-a num paradoxo, origem de um desassossego permanente.

13 fevereiro, 2006

Esta tristeza tão enrolada na cal



Lavra e Pousio, de João Rui de Sousa
Publicações D.Quixote, 2005

1. A poesia já aconteceu no momento em que dela falamos ou escrevemos. O lugar da poesia é assim um lugar que está antes do seu acontecer, um lugar de espera que serve apenas o espaço do fenómeno e nada mais. Ao contrário de toda a linguagem, que se espalha pelos escombros do mundo reunindo-os ou deixando-os náufragos ao contágio de significação, a poesia desprende-se do dizer para esse lugar, pinga sem significado, como uma língua que existiu e se tornou incapaz, no progresso da espécie, de dizer o mundo, de o nomear. Não falo, que fique claro, de um resquício de um mundo e de uma língua que já não estão ao nosso alcance (embora saiba que há autores que assim se defendem), falo de um lugar que apenas se pode encher no encontro de algumas palavras, que pingando se desfazem em sentido.
2. À obra de João Rui de Sousa que começou com o livro Circulação, publicado no extinto Círculo de Poesia, da Moraes Editores, acrescenta-se agora este livro, que como é escrito em nota final, reúne oitenta e dois poemas escritos entre 1985 e 2004, a maioria publicados em jornais, revistas e volumes colectivos.
Estamos assim perante uma recolha de poemas de vários tempos, que como indica o título, sofreram da organização intrínseca à lentura dos dias.
Enquanto lia os três capítulos que dão forma a este livro, lembrei-me, muitas vezes, dos versos de Carlos de Oliveira: Rudes e breves as palavras pesam / mais do que as lajes ou a vida, tanto, / que levantar a torre do meu canto/ é recriar o mundo pedra a pedra.
Não falo da influência de Oliveira na depuração formal do versos nem do cheiro inebriante de Camões: o que de significativo esta poesia revela é um poeta que tendo-se mostrado sempre num movimento duplo, de quem revela a alegria de estar vivo e a pena de ser, deixa escorrer agora para os versos o desconcerto de um ocidental «com a deriva e o rombo / da quilha já em descida». Poderíamos, é claro, referir que o sujeito destes versos e o seu território é alguém que nunca tendo deixado de, com sarcasmo e ironia, apontar as vicissitudes do seu tempo, reflecte, muitas vezes neste livro, algo do português contemporâneo, urbanizado, e dessa longa tristeza, tão enrolada na cal, bem ao rés da nossa mesa (pg.27), cuja geografia afectiva, tão bem desenhada pelo português em rectângulo no fundo da Europa, teima em sumir-se no mar fora (pg.43), como a jangada de Saramago.
João Rui de Sousa, que nos habituou há muito a um relatório (poético) exaustivo do que é a condição humano, nunca afasta a presença de uma alegria, um caminho, ou como ele escreve, uma alegria de linho / na escuridão do sargaço (pg.50). O que esta poesia inscreve, como uma excisão no corpo de todos os leitores, é uma melodia táctil que constrói aos poucos um espaço auditivo muito próprio, muito rente à pele, como pequenas histórias que não podiam deixar de ser ditas, pronunciadas. Estes versos partem de um futuro qualquer, o do poeta, por exemplo, muito deixado ao abandono para o que será, e encaminham-se de olhos bem abertos para os poisos já vividos. O que de nostálgico emana desta poesia reside mais na sua musicalidade do que reviver um tempo que pertence ao olvido: neste confronto, funde-se na perfeição a destreza rítmica com o canto. E é por aqui que vamos na entrada do segundo capítulo.
A leitura desta parte solicita-nos para um tempo de construção que nos parece anterior à primeira parte e que é dominada por duas linhas de força, a saber: o trabalho e os dias, e uma linguagem solta num registo do quotidiano. Há, portanto, um contar de pequenas histórias, vertidas em verso, com a poderosa estrutura frásica e musical de João Rui de Sousa a dizer-se em quadros autobiográficos (como o Concerto para Estore, Buzina e Criança. Este título, como veremos adiante, bem poderia ser o nome de uma composição musical bem contemporânea). A passagem das partes, feita por uma porta sem nome, tem que ser feita eliminando o rastro que, possivelmente, os poemas anteriores deixaram em nós. A todo o momento somos surpreendidos por uma linguagem ao rés da pele, feita de músculo e sangue e de um atrevimento contra o modo como, sem o sabermos, ou sabendo-o adiamos o seu pensar para outro dia, os outros e os objectos nos (des)organizam o quotidiano. Lembro, a título de exemplo, Confusão Bancária: (o computador que é puta / que o pariu já não computa / nada a fazer caro Alfredo). Regista-se nesta segunda parte o uso da repetição de algumas palavras (tão usado por algumas vanguardas instaladas no Moderno) que têm um efeito musical dodecafónico, espelho de uma realidade fragmentada e que, paradoxalmente, pode ser unida por simples palavras: estas repetições funcionam como uma espécie cola, que acentuando a fragmentação (ou deflagração) do quotidiano unem esses pedaços dispersos no tempo, fixam-se na realidade que é o poema (A Palavra: Conexões). O que estes poemas oferecem ao seu leitor (neste caso, a mim) são pequenas construções, que sem a sua leitura permaneceriam para sempre naquele lado sombrio de uma memória que ser quer esquecida para que possamos ainda viver: O Grande Voo, cujo motivo lembro em notícia de jornal ou televisão, é disso um exemplo.
Não deixa de estar presente, o que é rastro profundo na obra deste poeta, esse olhar terno sobre os seres; sobre o que todos os dias se ergue como uma novidade por sobre os escombros e a estranheza de ainda estarmos vivos. Esta ternura por nós, seus leitores, uma espécie de postura ética do poema (imaginando por detrás o seu autor) desvenda-se com mais facilidade na terceira parte deste livro, que abre com uma citação de Mário de Sá-Carneiro. Na verdade, para se «Lavrar no chão dos versos» é, nos dias de hoje e possivelmente de sempre, aceitar que para dar forma a algum sentido que por nós se quer comunicar é necessário ter a palavra amor e ter amor à palavra. É não perdermos entre os dedos aquele longo fio, feito de morte e sangue, que é toda a gesta que nos antecedeu (gloso aqui o poema Lavrar no Chão dos Versos, que abre o último capítulo). Esta parte do livro pode ser lida como uma continuação dos temas matriciais que povoam a primeira, sobretudo, a evocação de um tempo cumprido; não um folhear de memórias em verso postas, mas o de uma voz que recobre a paisagem (iremos ver que só isto serve a literatura), germinando por entre a neve e numa geografia afectiva (como demos conta na primeira parte) que «sem rumo / vai no jeito da descida».
3. Como bem o sabe João Rui de Sousa, o mundo apenas pode ser escrito e reescrito e nada mais, nem sequer desvendado. Também não é este o ofício ou uso da poesia. A sua função é de uma varredura periódica na face do mundo. O que o leitor terá é um espaço, ou melhor, um duplex, com espaços diferentes mas contíguos. No primeiro avista-se o deserto preenchido por algumas coisas, pode não ser bem um deserto mas o espaço que ficou depois de o poeta varrer essa superfície, no outro espaço reside o lugar da criação dialógica, do que se pretende que o leitor execute com uma leitura que é outra varredura mas em sentido contrário, de recomposição. O poeta, no seu constante aperfeiçoamento da forma, leva-nos da decomposição própria de quem se olha, a um processo de reconstrução de um espaço, onde conviver com o trágico e a perda (qualquer que ela seja, pois o humano é um ser em perda) é um acto de sobrevivência.
[publicado na revista Vértice, nº126, Jan-Fev, 2006]

08 fevereiro, 2006

«O mundo é uma paisagem devastada pela harmonia»

O Choro é um Lugar Incerto

Rui Nunes, Relógio d’Água, 2006


Este livro é constituído por duas partes. A primeira foi escrita no olhar das fotografias de Paulo Nozolino [expostas no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, entre 7 de Maio e 10 de Julho de 2005. O catálogo com o título Far Cry, contém estes textos]; a segunda é uma espécie de roteiro do autor por lugares que se podem escrever. Antecede-as um prefácio da professora brasileira Yara Frateschi Vieira que tem dedicado especial atenção à obra deste autor.

A pergunta que se pode fazer à primeira parte é: vivem bem os textos sem as fotografias? A resposta é sim. A reprodução de três fotografias desloca-se sobre a escrita com outras indicações visuais, reforçando a inquietação que atravessa os textos, subtraindo-os a um tempo e a um lugar precisos. A ausência da imagem coloca-nos, mais a nossa circunstância, no lugar do que se dá a ver e amplia-nos; faz-nos deslizar por uma cicatriz, constantemente reaberta pela palavra luz que se acende para o medo e para a dor e, sobretudo, para os destroços causados pelo «exercício» de nos mantermos vivos. Ler este exercício é regredir a uma gramática que sabe, na sua compaixão, ampliar os destroços de uma harmonia, efeito da obrigação que o humano impõe, desde sempre, como saber técnico, à realidade e à reprodução: no princípio e no fim, são os destroços e o silêncio que perduram. Ao caos e ao silêncio o humano impõe ordem e ruído, para lhe suceder novamente caos e silêncio. Ver assim, é ampliar o que sufocado pela sistematização e pela geometria é digno dos nossos olhos, de ser pronunciado e, por fim, de ser salvo: «o homem sentado mostra a pobreza, mas não acusa: abre unicamente os olhos: abre em nós os seus olhos» (pg.41).

Alguns poemas da segunda parte (os habitantes da casa: luz, palavra, segredo) são escritos sob a influência da dor, do ardor dos olhos que reconhecem o lugar do mal. Há muitos poemas sobre Mauthausen (http://www.remember.org/camps/mauthausen/), uma pequena cidade perto de Linz, que antes da segunda guerra mundial trabalhava a pedra que pavimentava as ruas de Viena. Com a guerra, construiu-se um campo de concentração, e a pedra retirada pelos prisioneiros serviu para construir as edificações do campo, entre elas os fornos crematórios e as câmaras de gás. Os prisioneiros de Mauthausen extraíram e trabalharam a pedra que um dia serviu para o seu extermínio. Mesmo em Auschwitz tinham medo daquele campo austríaco.
É necessária esta introdução (dirigida ao leitor que desconhece a existência de Mauthausen) para entendermos a maioria dos poemas a que Rui Nunes deu o nome deste campo.

No lugar da pedra ficou uma enorme cratera coberta hoje por mato e erva e «os pássaros saem dela, na oscilação de um canto» (pg.53). Não indagam estes poemas a razão do humano para infligir noutros tal sofrimento, mas o que é preciso fazer para esquecer. E a resposta parece ser: esperar, esperar muito tempo até que haja novos olhos para ver, novos sentidos que inventem outro relevo, sem história, que repouse para sempre no seu problema estático que é qualidade de todas coisas; um tempo que já não lembre, que tenha outra memória do humano. Porque o cheiro ainda persiste no vento que apaga o nome de deus. O cheiro das mãos a roubar pedra à montanha; o cheiro dos corpos a subirem ensanguentados a ladeira feita de morte; o queixume do arvoredo que exala ainda o fumo dos ossos, veias, muco e nervos em que os corpos se transformaram antes do calor os desfazer. É preciso uma eternidade, talvez. Até ao momento em que ao dizer um nome, este não se extinga. Por ora, «a dor liberta-me de todos os nomes a que me poderia acolher e concentra-se num único e distante nome: Deus: murmuro-o, e ele retrai-se, até se extinguir.» (pg.60).
Agora quem narra é um deles sentindo «os detritos sempre a acumularem-se», restos que é preciso varrer para dentro do corpo, para dentro da morte. Não age assim para se salvar, mas para que uma pausa irrompa do cansaço e levante a ternura; para que irrompa da pobreza a palavra casa ou outra palavra na infância.

E depois há outros lugares que o não são, mas espaços de perturbações. Olha-se para a ruína em que tudo se transformou, olha-se para a pobreza que é ainda, nestes poemas, um reduto final de sobrevivência. Esperamos que surja algo, imprevisto, que recomponha a face do mundo, não para lhe dar sentido («deixemos o sentido a Deus») mas para que aumente a alegria da nossa errância. Não queremos que outros nos ensinem como é estar vivos em confronto com deus: queremos ser inteiros entre os destroços; completos no corpo que vagueia e já não vê a luz mas o que ela provoca na pele do mundo. Estar em Ceuta é estar em Viena. Temos que regressar rapidamente a casa e voltar a partir: movemo-nos pelo desejo de catalogação da dor e da ruína, por novos ruídos que trazem o longe para bem perto, o desconhecido para o nosso espaço privado. Só o ruído pode ainda fazer isto. O ruído do que fica muito além, lugar de penumbra e perda, traz-nos um espaço que construímos para sobreviver. Somos herdeiros de um mundo em fuga «e nós uma transparência que o mundo atravessa. Que pena já não se poder abrir a janela do comboio para dizer adeus, ver quem nos ama a desaparecer» (pg.78). Só os sons que vêm de longe apaziguam (pg.80) pois os que nos são próximos são de lugares e seres onde cresce o vazio, que fabrica a ruína «com uma precisão maníaca» (pg.81).
O que une o tempo é a memória que assassina o presente. É incapaz de o resgatar ao naufrágio que vem de longe, à emersão dos destroços.
E para não ter que confrontar-se, sistematicamente, com a mesma desolação, o poeta procura na viagem um nome, um nome que tudo suspenda, nem que sejam apenas palavras que regressem ao corpo em forma de poema, para que a nossa parte inumana venha finalmente ao nosso encontro[1] e não lembre, nem reconstrua.

[1] Cfr. Fernando Guerreiro, Italian Shoes, Vendaval, Lisboa, 2005, pg.63. Ver tb. citação de Bragança de Miranda no artigo (deste blog) A Citação é um Objecto.

07 fevereiro, 2006

A fotografia em Thomas Bernhard


Os que se interessam por fotografia têm no livro Extinção algumas páginas que lhes são particularmente dirigidas. Escreve: «Fotografar é um vício abjecto, que a pouco e pouco e pouco se vai apoderando de toda a humanidade, porque esta não está só apaixonada, mas também doida pela distorção e pela perversidade e, de tanto fotografar, toma efectivamente, com o tempo, o mundo distorcido e perverso pelo único que é verdadeiro» (pgs.37, 38 e 208). Para Bernhard, através de Murau, o narrador, as imagens deslocam e colonizam o real: um pensamento muito debatido no contemporâneo.
Nesta sua derradeira obra, Thomas Bernhard não deixa nada de fora: o mal tudo sobrevoa e tudo enche e só o excesso como sublimação mantém vivo o narrador (autor da sua própria extinção) e esse excesso manifesta-se na narração da história trágica de Wolfsegg.

06 fevereiro, 2006

A CITAÇÃO É UM OBJECTO

Para uso pessoal: uma citação é um objecto ou a citação é um livro
Poesia é o nome que dou a certas perturbações que em mim provocam as palavras e de que eu sou o local de ocorrência, o hospedeiro e o portador. (Fernando Guerreiro, Italian Shoes, Vendaval, 2005, pg.63).
la «substance» de l´homme n'est pas l'esprit en tant que la synthèse d'âme et de corps, mais bien l'existence. (Martin Heidegger, Être et le Temps, Éditions Gallimard, Paris, 1986, pg.159).
O mundo é uma paisagem devastada pela harmonia. (Rui Nunes, O Choro é um Lugar Incerto, Relógio d'Água, Lisboa, 2006, pg.38).
o alcance existencial de um determinado fenómeno social é perceptível com maior acuidade não na altura da sua maior propagação, mas sim quando ele ainda se encontra nos seus primórdios, quando é incomparavelmente mais débil do que aquilo em que se irá transformar mais tarde. (Milan Kundera, A Cortina, Edições Asa, Porto, 2005, pg.107).
Porque a morte espreita no extremo limite da mudez, à beira da fala.
Ao invés do retrato, o nome é puro sinal de um ser e de um acontecimento.
Nunca se olha para um rosto com indiferença.
(José Gil, «Sem Título» - Escritos sobre Arte e Artistas, Relógio d'Água, Lisboa, 2005, pgs.26, 28 e 31).
talvez hoje seja menos preciso destruir as qualidades do homem (elas estão a ser destruídas pela voragem da técnica) do que introduzir o humano no mundo das qualidades, cada vez mais inumanas.
(J.A.Bragança de Miranda, Traços-Ensaios de crítica da cultura, ed.Vega, Lisboa, 1998, pg.89).
o solitário é aquele que perdeu a sua tradição e que carrega nos ombros o cheiro das sepulturas que não foram fechadas.
(Maria Filomena Molder, O Absoluto que Pertence à Terra, Vendaval, Lisboa, 2005, p.49)
A nossa parte lunar sonha com uma região deserta. (Don DeLillo)
A vida parece não servir os nossos objectivos, isso é indiscutível. (Lars Gustafsson)
O homem que foi perfeito é um falhanço desprezível. (Philip Roth, Traições)

04 fevereiro, 2006

Alice Revisitada


(Texto publicado na NON! em Jan-2001)

Se eu me perguntar «era eu mesmo esta manhã?», não saberei responder, mas lembro-me de me ter sentido ligeiramente diferente quando acordei. Diferente como se parte do meu nome tivesse sido invadido por uma gralha orgânica; como se me tivessem nascido coisas em sítios onde não as tinha; ou tivesse perdido outras, estando agora estes lugares vazios, feridos mas ainda não visíveis. Mas se eu não sou o mesmo, a pergunta seguinte é «Quem sou eu no mundo?» É a isto que importa responder. Mas esta pergunta como muitas outras já eu fazia ontem e na semana passada e, possivelmente, muitas semanas antes. No entanto, a pergunta parece-me agora ligeiramente diferente. E esta diferença ressoa na palavra mundo que eu não colocava na frase nos dias que antecederam este. Se sempre me interroguei com «Quem sou eu?» é o mundo que faz a diferença, tornando-me em cada manhã outro ou parte de outro que não se deitou comigo.
«Quem sou eu então? Diz-me isto primeiro e depois, se eu gostar de ser essa pessoa, eu aparecerei: mas se não, eu ficarei onde estou até ser outro qualquer». Um outro que não se sinta tão diferente com a pequena passagem do tempo.
Há dias –acontece!- que gostaríamos de ter outro nome, Alice, por exemplo, e com esse nome sentimos que poderíamos ser diferentes, mais humanos, demasiado humanos. Mas isso é parte de uma ficção, e o que agora acontece é desemelhante: sentindo que estou a perder o meu nome, perco através dele o quem sou eu no mundo.
Mas não é a doença do nome que mais incomoda, pois isso é um efeito, é sentir que realmente, como os olhos que se adaptaram anos a fio às figuras, outros órgãos estão em transformação, a caminho de algo que não vislumbro mas que já não me representa completamente; em fase de adaptação como se adapta uma prótese a um corpo, uma lente a uma máquina fotográfica.
No entanto, há aqui uma diferença radical: enquanto eu posso manobrar, moldar e adaptar a prótese ao meu corpo, bem como escolher a lente mais indicada para uma dada situação, com as novas formações em trânsito eu não sei o que fazer delas pois elas inserem-se na carne, sem me aperceber, por um sítio preciso, o da distracção. Também foi esta distracção que levou Alice ao Mundo da Fantasia, que era uma abertura em forma de toca de coelho. Distrairmo-nos faz parte da nossa condição. «Pensar é estar distraído», dizia o Bernardo Soares, mas contemplar também é uma distracção; como o é amar e odiar; esquecer os mortos e os vivos: se assim não fosse viver seria praticamente impossível. É através do tempo e lugar da distracção, em que está anulado o espaço real, que, sem darmos conta, o trânsito das formações entra em acordo com os nossos sentidos, deixando restos que se irão perpetuar até uma nova substituição. É uma espécie de falha na ontologia natural. Cada vez que acordamos, se por um lado é sempre bom que isso aconteça, por outro sentimo-nos ligeiramente diferentes, não tendo para eliminar esta sensação nenhum pedaço de bolo, bebida ou cogumelo, tornando efectivo o colapso da distinção entre o corpo humano e a tecnologia. (Agora, um reparo ligeiro: as mãos estão perdidas no corpo, são o excesso dos braços que se materializou. Há momentos que não sabemos o que lhes fazer, se as esconder junto ao nosso corpo, se as esconder no corpo de outro. E esta sensação com uma parte do corpo deve ser idêntica a outras partes do mesmo corpo, os olhos por exemplo. Eles são a excelência da distracção, também eles se sentem sugados pelo mundo e o corpo deve fazer um grande esforço muscular para os reter nas suas cavidades. Mas não é de agora esta estranheza se considerarmos estranhas partes que pertencem ao nosso organismo mas que em nada contribuem para a sua unidade funcional. Como para a anatomia deve estar o apêndice. Para a sua inutilidade há muitas explicações mas variáveis, sabendo, com a maior certeza médica, que não faz parte do corpo funcional, sendo, no entanto, útil para a medicina legal, pois é por esse sítio da anatomia topográfica que a putrefacção começa, como uma nódoa negra esverdeada. Mas em algum tempo do humano ele deve ter servido para alguma coisa: é esta a explicação mais convincente e é, aliás, uma explicação tecnológica. Como devem ser tecnológicas um dia, sendo ainda preambulares, as explicações para a perda de função das mãos e dos olhos e com o avanço outras se irão perder, atingindo, pelo varrimento, outras partes do corpo e por fim, quiçá, o próprio corpo. Mas estamos ainda no tempo do não saber quem somos: «sei pelo menos quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que devo ter mudado muitas vezes desde então». O corpo, no entanto, vai-se habituando, distraidamente, a estas novidades, a estes contínuos recomeços (uma espécie de fusão do tecnológico com o humano impede a distinção; uma espécie de amor à técnica)).
O corpo não faz mais do que realizar uma espécie de outra ordem natural, ser aquilo que pareces ser, e por esta ordem as ligeiras diferenças amontoam-se até serem semelhanças que já não sabemos distinguir, porque nós não aprendemos a olhar e o pouco olhar que temos é gasto metodicamente a comparar, não para distinguir mas para desacrescentar. Então um dia, que está muito próximo, quando não soubermos quem somos, teremos na carteira uma fotografia nossa com a legenda: se não sabes o que é um humano olha para o retrato.









Foi assim que Lewis Carroll fez: if you don’t know what a Gryphon is, look at the picture.



02 fevereiro, 2006

UMA EXPERIÊNCIA DE PALAVRAS


Vou tentar. Acerco-me do branco. Neste hotel do País de Gales tenho um desejo: descer ao bar que funciona no rés-do-chão e pedir que baixem a música. Sweet dreams, cantam os mais distraídos das horas junto ao balcão.

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