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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

04 fevereiro, 2006

Alice Revisitada


(Texto publicado na NON! em Jan-2001)

Se eu me perguntar «era eu mesmo esta manhã?», não saberei responder, mas lembro-me de me ter sentido ligeiramente diferente quando acordei. Diferente como se parte do meu nome tivesse sido invadido por uma gralha orgânica; como se me tivessem nascido coisas em sítios onde não as tinha; ou tivesse perdido outras, estando agora estes lugares vazios, feridos mas ainda não visíveis. Mas se eu não sou o mesmo, a pergunta seguinte é «Quem sou eu no mundo?» É a isto que importa responder. Mas esta pergunta como muitas outras já eu fazia ontem e na semana passada e, possivelmente, muitas semanas antes. No entanto, a pergunta parece-me agora ligeiramente diferente. E esta diferença ressoa na palavra mundo que eu não colocava na frase nos dias que antecederam este. Se sempre me interroguei com «Quem sou eu?» é o mundo que faz a diferença, tornando-me em cada manhã outro ou parte de outro que não se deitou comigo.
«Quem sou eu então? Diz-me isto primeiro e depois, se eu gostar de ser essa pessoa, eu aparecerei: mas se não, eu ficarei onde estou até ser outro qualquer». Um outro que não se sinta tão diferente com a pequena passagem do tempo.
Há dias –acontece!- que gostaríamos de ter outro nome, Alice, por exemplo, e com esse nome sentimos que poderíamos ser diferentes, mais humanos, demasiado humanos. Mas isso é parte de uma ficção, e o que agora acontece é desemelhante: sentindo que estou a perder o meu nome, perco através dele o quem sou eu no mundo.
Mas não é a doença do nome que mais incomoda, pois isso é um efeito, é sentir que realmente, como os olhos que se adaptaram anos a fio às figuras, outros órgãos estão em transformação, a caminho de algo que não vislumbro mas que já não me representa completamente; em fase de adaptação como se adapta uma prótese a um corpo, uma lente a uma máquina fotográfica.
No entanto, há aqui uma diferença radical: enquanto eu posso manobrar, moldar e adaptar a prótese ao meu corpo, bem como escolher a lente mais indicada para uma dada situação, com as novas formações em trânsito eu não sei o que fazer delas pois elas inserem-se na carne, sem me aperceber, por um sítio preciso, o da distracção. Também foi esta distracção que levou Alice ao Mundo da Fantasia, que era uma abertura em forma de toca de coelho. Distrairmo-nos faz parte da nossa condição. «Pensar é estar distraído», dizia o Bernardo Soares, mas contemplar também é uma distracção; como o é amar e odiar; esquecer os mortos e os vivos: se assim não fosse viver seria praticamente impossível. É através do tempo e lugar da distracção, em que está anulado o espaço real, que, sem darmos conta, o trânsito das formações entra em acordo com os nossos sentidos, deixando restos que se irão perpetuar até uma nova substituição. É uma espécie de falha na ontologia natural. Cada vez que acordamos, se por um lado é sempre bom que isso aconteça, por outro sentimo-nos ligeiramente diferentes, não tendo para eliminar esta sensação nenhum pedaço de bolo, bebida ou cogumelo, tornando efectivo o colapso da distinção entre o corpo humano e a tecnologia. (Agora, um reparo ligeiro: as mãos estão perdidas no corpo, são o excesso dos braços que se materializou. Há momentos que não sabemos o que lhes fazer, se as esconder junto ao nosso corpo, se as esconder no corpo de outro. E esta sensação com uma parte do corpo deve ser idêntica a outras partes do mesmo corpo, os olhos por exemplo. Eles são a excelência da distracção, também eles se sentem sugados pelo mundo e o corpo deve fazer um grande esforço muscular para os reter nas suas cavidades. Mas não é de agora esta estranheza se considerarmos estranhas partes que pertencem ao nosso organismo mas que em nada contribuem para a sua unidade funcional. Como para a anatomia deve estar o apêndice. Para a sua inutilidade há muitas explicações mas variáveis, sabendo, com a maior certeza médica, que não faz parte do corpo funcional, sendo, no entanto, útil para a medicina legal, pois é por esse sítio da anatomia topográfica que a putrefacção começa, como uma nódoa negra esverdeada. Mas em algum tempo do humano ele deve ter servido para alguma coisa: é esta a explicação mais convincente e é, aliás, uma explicação tecnológica. Como devem ser tecnológicas um dia, sendo ainda preambulares, as explicações para a perda de função das mãos e dos olhos e com o avanço outras se irão perder, atingindo, pelo varrimento, outras partes do corpo e por fim, quiçá, o próprio corpo. Mas estamos ainda no tempo do não saber quem somos: «sei pelo menos quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que devo ter mudado muitas vezes desde então». O corpo, no entanto, vai-se habituando, distraidamente, a estas novidades, a estes contínuos recomeços (uma espécie de fusão do tecnológico com o humano impede a distinção; uma espécie de amor à técnica)).
O corpo não faz mais do que realizar uma espécie de outra ordem natural, ser aquilo que pareces ser, e por esta ordem as ligeiras diferenças amontoam-se até serem semelhanças que já não sabemos distinguir, porque nós não aprendemos a olhar e o pouco olhar que temos é gasto metodicamente a comparar, não para distinguir mas para desacrescentar. Então um dia, que está muito próximo, quando não soubermos quem somos, teremos na carteira uma fotografia nossa com a legenda: se não sabes o que é um humano olha para o retrato.









Foi assim que Lewis Carroll fez: if you don’t know what a Gryphon is, look at the picture.



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