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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

22 fevereiro, 2006

A INTERVENÇÃO CULTURAL de Thomas Hirschhorn


(notas à exposição em Serralves-Porto)
As diferentes intervenções deste artista suíço no espaço público dedicadas, sobretudo, a escritores, filósofos e artistas, são sempre instalações montadas para um olhar que as vê desmoronar-se. A precariedade é qualidade essencial da obra de Thomas Hirschhorn (TH) que não quer ser rotulado de trabalhador social mas de artista, legitimando-se a si e à obra.
Aquela qualidade, por paradoxal que pareça, está presa a um conjunto de obras de arte que se constituíram para um Espaço Público que, no entender do artista, se oferece e obriga a um determinado conjunto de qualidades, insistindo na colaboração entre o espaço e a obra. O paradoxal reside no facto de sempre considerarmos a obra do espaço público, ao contrário do museu ou de uma galeria, como obra com uma duração, que as obras de Hirschhorn não têm. Este engagement da obra ao espaço reflecte uma posição bem clara do artista em toda a produção: há uma acção política na obra de arte. E para além desta acção (repare-se num quadro ético e moral constante como substrato da sua obra) há uma conformação da obra a um melhor entendimento do mundo: a arte é uma ferramenta para entender o mundo. Está assim traçado um quadro geral crítico da obra deste suíço. Se por um lado rejeita ser um trabalhador social, considerando-se apenas artista, por outro lado conforma a sua obra a um espaço público, impregnando-a de qualidades (a própria matéria prima tem estas qualidades) que lhe são adversas: o descontrolo, a assimetria, a falha e, com o tempo, a queda. Tudo na obra deste artista é, então, precário (Museu Precário Albinet).
A ideia de monumento, ou melhor, a noção clássica de monumento, é bombardeada pela obra de TH. A ideia geral deste artista é fazer, a partir da obra que o tenha marcado, um monumento precário. Na construção destes monumentos (dedicados a filósofos como Deleuze, Spinoza, Gramsci ou Bataille) [e quiosques (dedicados a escritores como Robert Walser e Ingeborg Bachmann) e altares (dedicados a escritores ou artistas como Mondrian e Raymond Carver] persiste destruída a formulação original. TH diz que os seus monumentos são também construídos por duas partes: a parte clássica, o corpo e a forma de quem é representado e uma parte informativa que contém a informação possível: livros, dados biográficos, vídeos, etc. Esta última parte pode ser entendida como o mapeamento parcial da acção do autor: dá a ver aos outros uma rede de afinidades electivas na relação do artista com outro artista e o seu pensar. Lembro-me de ver grandes quadros em Anschool II, ou em cima de mesas, desenhados com o traçado desses afectos, comportando fotografias, capas de livros, dados biográficos, etc, ie, relações. TH relata mesmo, sobre o Monumento Bataille, que pediu a Christophe Fiat, que lhe explicasse a obra deste escritor francês, encorajando-o a fazer um mapa da obra de Bataille. O problema da relação é tão importante em TH que obriga a arte, como vimos, a conformar-se à rede de relações estabelecidas pelo espaço público; e dentro da exposição, qualquer que ela seja, obriga também os autores, e em maior extensão, os seus monumentos, a uma rede de afectos perecíveis que para o artista pretende ser uma difusão da obra do filósofo.
Será?
Esta difusão assemelha-se a qualquer página de publicidade de uma editora ou de divulgação de uma palestra ou conferência. Só que esta notícia o artista desmonta-a no espaço e no tempo de vida do autor e no espaço do objecto artístico. Há apenas esta ideia: divulgação. Se o artista pretende com estes monumentos celebrar um filósofo, não o celebra em reflexão ou pensamento, mas na admiração que sente, colocando-a no centro da precariedade da obra. A morte atinge tudo: dos materiais que usa à admiração. O que perdura e resiste pertence ao espectador ou observador. Essa rede ou rizoma não desenvolve um pensamento crítico sobre o autor ex-posto, mas uma reflexão sobre o efémero. Cremos que TH pensa o contrário como fundamento das suas construções (Cfr. Statement: «Monuments», folha da exposição em Serralves, Fevereiro de 2002).
Afinal o que TH pretende, diz-nos, é afirmar formas: entendo a arte como a afirmação de formas.
E estas formas, sejam elas altares, monumentos ou quiosques, possuem qualidades que podem ser consideradas denominadores comuns: são sobre alguém, obra ou vida, que mantém com o artista uma relação e uma tensão; as construções podem ser deslocalizadas, ie, não interessa o espaço público onde se encontram, embora sofram, na sua forma e disposição alterações na deslocalização; são de duração limitada e, no dizer do artista, a apresentação de alguém não é feita sob o efeito de preocupações estéticas mas em pura energia. Desconhecemos o impacto desta última qualidade na obra de arte de TH, embora diga assiduamente que apenas lhe interessa expressar uma energia.

A rede de altares, monumentos e quiosques perde-se apenas, e de uma forma superficial, não subterrânea, na quantidade de objectos expostos. TH explica que não gosta da arrumação das galerias, museus ou qualquer espaço expositivo. Lembra-se sempre da ordem arquitectónica, por ela de uma casa, e por esta de uma classe social, uma elite. Mais é Mais, expressão que usa para afirmar a importância da quantidade como «facto aritmético e como facto político». Entendemos, mas entramos aqui com o problema do ruído semântico e físico (quando não conseguimos movimentar-nos correctamente pela exposição, como se ela nos obrigasse a um movimento, a uma penetração prevista na exposição, ou a uma negação do movimento aleatório, à deriva como fazemos numa exposição «normal» em que o espaço da circulação é livre para a deriva do corpo e do olhar). Em Anschool II, persistem os dois ruídos. Embora TH retome sempre a ideia que não pretende inundar o espaço e os que vêem, mas ajudar, na quantidade, o «individual a afirmar a sua importância», cremos que a palavra de que foge, submersão, provém da massificação do individual, que pretende, per-si, afirmar-se capaz de ser pensado no colectivo mas não consegue por domínio do ruído semântico das obras (complexificação das interpretações numa rede semântica que não consegue acordar-se para o sentido prioritário) e pelo ruído físico, uma espécie de ruído táctil, que nos torna, enquanto viajantes, cansados e adversos a alguns movimentos obrigatórios.
TH parece ter razão neste impulso pela quantidade e pela individualidade num aspecto: como ele afirma na explicação do seu gosto pela colecção Barnes (os quadros são dispostos por tamanhos e não por tema ou data), o ruído semântico e físico anula muitos dos objectos, fazendo sobressair apenas alguns, que mantém com a linguagem uma tensão, e criam nos que circulam uma espécie de proto-literatura (esta que eu faço aqui, por exemplo): os monumentos, como exemplo, porque nos afectam e criam connosco relações especiais, prolongamentos que somos dessas escolhas dispostas nesse rizoma ou rede.

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