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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

20 fevereiro, 2006

A METÁFORA DA ILUSÃO


As novas intervenções no espaço de exposição

Todos já nos apercebemos de uma quantidade enorme de artefactos que colocados nas salas de uma exposição de arte contemporânea aí se assomam aos nossos sentidos, afectando-nos, sobretudo, pela interrogação: a coisa parece-nos deslocada, retirada de uma venha estrada, de um velho fontanário, de um corpo que já não existe. Esta imitação, esta mimesis, pretende recriar no espaço de exposição algo que naturalmente se perdeu? Em parte, não. É apenas evocação. Mas esta evocação parece ter um duplo sentido que não é contraditório, pois a sua afirmação como obra de arte preenche-se nesse duplo sentir, que é também um duplo pensar. Enquanto a obra se mostra demasiado estática numa observação directa (e repare-se que este tipo de obras são mais estáticas e, simultaneamente, mais leves que as demais, pintura, escultura, fotografia, etc., o que parece ser contraditório mas iremos ver que não é) ela devolve, através do nosso movimento, uma cinestesia que a elucida parcialmente. Dizemos em parte porque falta algo que está fora dela para se completar. Fora dela, não no sentido moderno do completo estético, mas porque a sua profunda manifestação em nós representa-se numa espécie de transbordo emocional que, ao contrário da maioria das obras de arte, é-lhe condição necessária. Este transbordo só existe se o espectador já experimentou a visão de algo semelhante fora do espaço da exposição, ie, nos objectos ou artefactos com utilidade no mundo. É verdade que, seguindo aqui um preceito heideggeriano, o objecto representado não tem nenhuma utilidade, nem nasceu com nenhuma serventia, quer portanto ser apenas uma obra de arte. Este objectos vivem de uma sucção da memória individual e colectiva, caracterizam-se por novas espécies de metáforas, cujo desvio implica o nosso retorno a uma experiência que nos emociona: é este o transbordo emocional: da nossa experiência para o objecto e nunca ao contrário.

Este tipo de obras de arte vivem mais que outras de relações míticas entre as diferentes estruturas arqueológicas que compõem o homem contemporâneo, ainda não completamente afastado do moderno e das suas afecções espaciais. O que gostamos desta fonte no meio da sala da exposição, não é que ela seja realmente uma fonte, nunca teve essa utilização, mas que faz em nós nascer novamente uma fonte: a fonte que experimentamos num dia quente de Julho. Secas as fontes, desalojadas da sua serventia, ingressaram no espaço da arte, assemelhando-se um pouco, que iremos elucidar, a objectos artísticos etnográficos o que é diferente de serem apenas objectos de etnografia. Aliás, se as obras de que falo fossem expostos num museu etnográfico o transbordo emocional, e o veio estético, eram insuficientes para fazerem delas obras de arte, faltava-lhes a metáfora da ilusão.

Estas obras chocam-nos pelo seu desenraizamento. Esta ideia de choque é bem contemporânea, presa à falta de correspondência com o real. A noção de desenraizamento (a desumanização da arte, ou melhor, a desnaturalização da arte) está preso ao homem urbano do sec.XX como foi bem identificado por Heidegger no seu ensaio «A Origem da Arte» (trad. portuguesa na obra Os Caminhos de Floresta, F.C.G.), em Benjamin no célebre texto «A Obra de arte na era da reprodutibilidade técnica ou em Ortega y Gasset (para citar apenas alguns). Seguimos aqui uma leitura muito interessante de Gianni Vattimo em A Sociedade Transparente, onde conjuga a palavra stoss (de Heidegger) com shock (de Benjamin). A primeira está mais ligada à precariedade humana, à evidência da morte, a esse desenraizamento que é causa de angústia no homem contemporâneo. A palavra shock «é definida por dois aspectos que caracterizámos seguindo as indicações de Benjamin e Heidegger: antes de mais, e fundamentalmente, ela não é mais do que uma mobilidade e hipersensibilidade dos nervos e da inteligência, característica do homem metropolitano. A esta excitabilidade e hipersensibilidade corresponde uma arte já não centrada na obra mas na experiência [...]
A segunda característica que constitui o shock como único resíduo da criatividade na arte da modernidade avançada é aquela que Heidegger pensa sobre a noção de stoss: isto é, o desenraizamento e a oscilação que têm a ver com a angústia e a experiência da mortalidade» (pg.64).
Então, a obra de arte que falamos caracteriza-se, por se centrar, simultaneamente, num objecto e numa experiência irrecuperáveis, cujo desenraizamento e deslocalização constituem no espectador uma metáfora da ilusão, e por ela se faz, parcialmente, a obra.
(a continuar)

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