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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

30 dezembro, 2010

Em Alguma Parte Alguma


Autor: Ferreira Gullar
Título: Em Alguma Parte Alguma
Editor/ano: Ulisseia/2010


O livro «Em alguma parte alguma”, do poeta brasileiro Ferreira Gullar (prémio Camões) chegou a Portugal ao mesmo tempo que era publicado no Brasil, facto que deve ser assinalado, já que ao longo dos anos temos assistido à chegada ao mercado português (o mesmo deve acontecer e em maior escala no Brasil em relação a autores portugueses) de alguns excelentes poetas que conhecíamos apenas de nome ou de poemas em revistas da especialidade ou antologias. Claro que quem anda actualizado se lembra de uma antologia (Obra Poética) deste autor publicada há alguns anos pelas edições Quasi.
A obra de Ferreira Gullar, já extensa, funda-se numa relação com o real e, neste livro, no permanente encontro com a ausência, mesmo da linguagem. A poesia aparece sempre por detrás do que não se sabe. A língua é aqui um dispositivo que diz simbolicamente o mundo e ao inscrever o nome, «pêra», por exemplo, põe em relevo um «máquina viva» em sua entropia. Ao ler estes poemas de Gullar, sobretudo os da primeira parte, vem até nós a expressão de Roland Barthes, a de que um texto (ou um poema) é um tecido, uma teia, através da qual a aranha se desfaz. Este tecido é feito de muitas texturas. Muitas o poeta convoca, do ínfimo às estrelas, do cheiro das flores ao brilho incessante dos astros. E esta convocação tem como fito «reinventar o certo pelo errado», mesmo que isto signifique o encontro com o corpo em perda e com a morte. Um encontro na palavra com os silêncios do mundo: «a poesia é, de fato, o fruto / de um silêncio que sou eu, sois vós, / por isso tenho que baixar a voz / porque, se falo alto, não me escuto».
Para ler.

28 dezembro, 2010

A Eternidade das Pedras


Uma exposição do fotógrafo Pedro Inácio (Stones: the perpetual peace, http://www.kfcenter.or.kr/english/art/01_read.asp?num=4018#) esteve patente ao público no Korea Foundation Cultural Center, Seoul, em Novembro de 2010. Este texto que aqui se reproduz faz parte do catálogo.

A Eternidade das Pedras / The Eternity of Stones

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
(Carlos Drummond de Andrade - 1902-1987)


Estas fotografias não são de pedras rolantes mas de pedras imóveis que nunca conheceram outra paisagem. Prepararam-se desde o início dos tempos para fazerem parte dela. Dizem que na sua viagem por Itália, Goethe trazia das viagens pelo campo os bolsos cheios de pedras. Para um poeta aquelas pedras deviam ter as marcas das grandes batalhas e das escolhas feitas por mãos criativas. O que ficou para trás, se para o futuro sobraram os grandes monumentos e estátuas, devia ter uma história para contar, impressões dos gestos, possivelmente os sons de um tempo que há muito acabou. Como muitos de nós em crianças, Goethe sabia que aquelas pedras deslocadas das suas paisagens iriam no dia seguinte para o lixo. A pedra é bonita ali, sob a luz e o vento, desviada para outra paisagem só lhe resta ser o despojo de um dia em viagem pelos campos e pelas praias.
Talvez por isso, Pedro Inácio capta-as na sua nudez elementar, guardando delas diferentes idades, espaços e figuras. Se algumas pedras, coloridas pelos líquenes, parecem ter chegado à idade maior, outras parecem ter nascido agora, vindas do ventre de todas elas, ainda tão frágeis que a nossa visão as imagina barro e pó.
Olhemos então para elas, cruzando o nosso olhar com o do fotógrafo. E o que nasce em cada um de nós é certamente o que deve aparecer aos olhos de um escultor: aquele maciço mineral tem, sem o saber, uma forma que avança do seu centro até à superfície e o individualiza na paisagem. O seu recorte é uma aparição que por instantes se solta para se fixar no olhar.
Como acontece no humano, também o que é mais frágil, ou se mostra mais exposto, sofre com o tempo. Sem o uso de nenhum instrumento, apenas cedendo à erosão, a pedra expõe-se, metamorfoseia-se frente ao sol, numa paciência de séculos. Algumas já estão muito próximas do seu destino, mineralmente podres, mas mesmo assim são heróicas sem o saberem. Há nelas a graça do mesmo; do que tranquilo espera que se cumpra o tempo, o seu. Mas a graça vem-lhes também de uma lembrança antiga como o dia, uma lembrança em perguntas: quantos homens já ali se sentaram, à sua sombra ou ao sol, a caminho de nenhures que é sempre a aventura? O que teria visto e ouvido a pedra se tivesse sentidos para tal?
A pedra não precisa de mais nada a não ser do nosso olhar. E com ele perscrutar, no mais ínfimo detalhe mineral, as impressões doutros tempos e do que vivo lhe tocou. As lendas acompanham as pedras. São substâncias nascidas de um desejo mitológico: perpetuar o que é fugaz no que parece eterno; perpetuar a catástrofe ou a alegria. A pedra dá-se bem com este desejo. Também a luz e a imagem destas fotografias desejam perpetuar um presente sobre o tempo em que estas pedras já não se mostrarão estáticas, contemplativas, mas grãos de areia ou solo arável.
Quem nasceu nas encostas de uma montanha relaciona-se com esses monstros serranos através da dimensão: de grandes e difíceis de escalar, passam com o nosso crescimento a ser mais pequenos. Estreitam-se as pequenas grutas onde nos escondíamos e a longa figura que nos tinha marcado na infância apresenta-se agora diferente, envelhecida. Sabemos que o tempo é uma evocação da matéria, mineral ou orgânica, por isso as fotografias de Pedro Inácio não captam apenas a diversidade natural mas também o que fomos e o que seremos, já que tudo está unido pelos elementos que possibilitam habitar o mundo: o sol, a terra, a água e o ar.

Luís-Cláudio Ribeiro

17 dezembro, 2010

Uma boa prenda de Natal


Título: Antologia
Autor: Fernando Echevarría
Editora/Ano: Edições Afrontamento/2010


Quando já lia filosofia, falamos no início da década de 80 (eu sou dessa ímpia geração), apareceram no mercado dois livros que pouco tendo a ver com o exercício de um pensamento reflexivo sobre a filosofia ou qualquer dos seus objectos, despertaram em mim uma enorme curiosidade. Dar a dois livros de poemas os nomes de Fenomenologia (1984) e Introdução à Filosofia (1981), pareceu-me na altura, e a esta distância, uma deslocação de campos da crítica e criação.
Vem agora Fernando Echevarría lançar no mercado uma reunião parcelar da sua poesia a que chamou apenas Antologia, unindo no mesmo objecto alguns dos principais poemas dos livros que vem publicando desde 1956. Se agora me parecem distintos estes poemas é porque o tempo passou por eles, deslocando-os também para a minha reflexão sobre o real. Na verdade, Echevarría constitui no panorama da poesia da segunda metade do século que findou, um caso exemplar: uma poesia construída em torno dos elementos, problemáticos ou não, que permitem reflectir sobre o conhecimento que temos do acontecimento, e do modo como este conhecimento atinge, mesmo que apenas simbolicamente, a nossa forma de sermos.

A sua leitura tem que ser feita com uma atenção extrema ao movimento e ao ritmo do verso, e uma atenção redobrada à torção semântica que Echevarría produz nalgumas palavras que nele são elementares.