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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

28 novembro, 2007

A Própria Luz é Cega


«Tudo se despeja na escuridão, a escuridão que existe mesmo dentro da luz; a própria luz é cega» (pg.73)


Há muito que a escrita de John Updike me desinteressava. Mas com este livro (Procurai a Minha Face) voltei com gosto a ele. O facto deste romance ser um diálogo em torno da arte do século XX - ou um longo monólogo com duas faces: entre Hope, a viúva de Zack (facilmente reconhecido em Jackson Pollock), e Kathryn, uma jovem jornalista- , torna-o muito interessante. Embora a maioria dos nomes seja invenção, reconhece-se neles, facilmente, alguns dos artistas que marcaram a arte americana depois da Segunda Guerra: Warhol, Rauschenberg, Kooning e Lichtenstein, entre muitas outras figuras da arte como o crítico Clement Greenberg.
As observações de Hope sobre a Pintura são de alguém atenta às circunstâncias que possibilitaram o surgimento das principais correntes artísticas e dos seus intérpretes.
A substituição de natureza por tela na relação corpo-natureza, concretiza um movimento que Hope descreve deste modo: a nova arte realiza-se «no limite da utilidade, uma arte que destruía a sua própria utilização, assim que esta podia ser identificada» (pg.208). Na verdade a tela é agora o lugar de exposição da vida do artista, transformando-a numa aventura. As coisas começavam a importunar os pintores. A sua presença tornava sofrível a pintura: a presença das coisas cega, não as conseguimos retirar do seu domínio, do irreparável (as coisas são como são e não podem ser de outro modo, diz Agamben). Por isso toda a luz que as queira esclarecer despeja-as na escuridão, que é o outro lado do seu existir; que é o que o tempo faz connosco: suga-nos para a sua escuridão.
Tal como pretendemos com o mundo, uma luz ilumina este diálogo e não um longo clarão que cega.
Deixo, por último, um desabafo de Hope: «o futuro está na tecnologia digital, que permite um armazenamento praticamente infinito, mas quem a escutará? Quem transcreverá e lerá essa infinidade de Dígitos?» (pag.242). Estamos a trabalhar, inutilmente, para deus?