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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

29 agosto, 2009

O Imprevisível Instante


É cada vez mais difícil encontrar os livros de poesia que se vão publicando. É cada vez mais difícil comprar livros de poesia de autores que publicam em pequenas editoras, em tiragens reduzidas. As grandes cadeias de livrarias há muito arredaram a poesia para prateleiras esconsas, quando ainda as têm. É claro que o mesmo se passa com o ensaio, mas em menor grau. Lembro-me que ainda não há muitos anos a maioria das livrarias que frequentava, pequenas e grandes, punham nos seus escaparates, ao lado da ficção nacional e estrangeira que se ia editando, as obras de poetas que saíam nas pequenas editoras vocacionadas para esta literatura. Sabíamos o que ia sendo editando olhando para essas montras, mesmo em centros comerciais. A clandestinidade onde entrou a poesia talvez lhe faça bem. Talvez seja a única saída perante a proliferação de uma ficção que esqueceu a modernidade (e a que não esqueceu, mesmo vendendo mais algumas centenas de livros, também deve ingressar nessa clandestinidade) e enche as livrarias, qualquer que seja o tamanho.

Tudo isto vem a propósito de dois livros desiguais em qualidade mas igualmente interessantes, publicados recentemente por uma pequena editora (que também edita uma revista de poesia), a Averno. Falo dos livros «Oráculos de Cabeceira», de Rui Pires Cabral e «A Caixa Negra», de Josep M. Rodríguez (com tradução de Manuel de Freitas).

Pretendo agora ocupar-me apenas do livro de Rui Pires Cabral.


O tempo fez-nos distantes. Desde meados do moderno que alguns de nós parecem não habitar o real, entendendo-se este como o espaço de deambulação e percepção do mundo: somos cada vez mais fantasmas. A poesia de Rui Pires Cabral abeira-se deste género em que se conjuga morte e vida e ambas são, no verbo, estranhas.
A salvação que ficou perdida numa época em que dissecar o dia era encontrar um sol determinado a sermos felizes é agora coisa de momentos: eternos retornos que podem fazer do dia uma memória que a escrita pode salvar, relendo-a. Tem, portanto, que ser escrita. A bolha da espuma dos dias é uma descoberta. Uma de cada vez, não toda a superfície que cobre a vida e que se tornou inenarrável.
O cadáver real tem sempre coisas para oferecer, nem que seja o cheiro da sua fermentação ou decomposição. Ou o cheiro do estranho que revive, por sempre o pensarmos morto à distância: «he loved beauty that looked kind of destroyed», relembra o poeta a partir de James Gavin. Todo o real é uma «beleza arruinada» que quer salvar-se pela intenção do poeta. O outro real que o poeta habita é um real clandestino que, em toda a poesia, quer vingar-se do mal.
Apenas um problema: o fantasma é cada vez mais real e habita sem sombra, mas vivo, o mundo. E habita-o pelo lado impraticável que é o da escrita.
Nestes versos repousam as mortes, as épocas, as cidades, os amigos e as estações que só aqui ainda são o que eram. Uma poesia clara, bem composta, sem deslizes que podiam atrapalhar a leitura. Em todos os poemas a possibilidade de uma acção decorrida a lembrar em cada olhar. Mas o poeta, na sua distância genuína, sabe que «ninguém parte de repente / à procura de mais mundo, / ninguém chega por acaso / ao seu nenhum sentido, olhando simplesmente / da varanda». É isso. Mas insistimos, até ser calo a recordação em verso de um tempo que sendo agora está para sempre perdido.