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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

23 outubro, 2009

O Erro como Conceito Produtivo


A definição de erro é vasta, podendo considerar-se aqui como o que é inexacto, o pecaminoso ou a falha de doutrina.
O erro era na obra de arte o resultado de uma deficiente técnica ou o efeito da má qualidade dos produtos usados.
Com as primeiras vanguardas do século passado e depois do erro se ter assumido como um ponto de passagem para a certeza, a completude ou o resultado científico exacto, passou-se a integrar o erro na obra de arte, tal como o músico introduziu o ruído na estrutura musical. O que estava de fora passou a ser contido pelo recipiente.
O erro, ou melhor, o bom erro é o resultado de uma acção decorrida até ao ponto em que errar se constitui num tempo e num espaço impossíveis de deslocar: mais para a frente é a dor; um pouco antes é um erro menor, imperceptível, já que ainda existe espaço e tempo até à melhor falha.
Com este erro, em que o antes ou depois estabelecia uma falha por inexactidão ou redundância, respectivamente, era natural que a arte o absorvesse e o expusesse: primeiro como o já não frágil da obra (e do mundo) embora visível; segundo, como acção ou natureza contida ou neutralizada pela própria noção de arte e obra.

Estes são os dois níveis que atravessam a maioria das obras expostas em «A Beleza do Erro» (The Bauty of the Mistake, LX Factory, em Lisboa, com organização de Puppen Haus, Associação Cultural).
Vemos peças em que o erro é assumido e torna-se o centro da obra, sem a fragilizar; e também obras de arte em que o erro é o leit-motiv da criação e assim é exposto.

Foi isto que me ficou de 30 artistas, nacionais e estrangeiros.
É pena que a exposição estivesse em público apenas 1 mês (creio que encerra a 25 de Outubro).
Deixo imagem de uma obra exposta, da autoria de Markus Hofer (Viena, 1977)

17 setembro, 2009

Orhan Pamuk


Outras Cores
Editorial Presença
Lisboa, 2009

Os textos de crónicas e ensaios que alguns escritores publicam em revistas e jornais de circulação e divulgação restritas ou que tendo um público mais vasto se perdem na voragem dos dias, quando reunidos ganham outra leitura e um tempo mais propenso à análise. É isso que acontece com o livro do escritor turco Orhan Pamuk, prémio Nobel em 2006.
O subtítulo do livro, Ensaios sobre a Vida, a Arte, os Livros e as Cidades, remete o leitor subitamente para o espaço multidisciplinar onde o ponto de vista autoral é hegemónico. Poucos detêm este estatuto e são menos os que o merecem. Pamuk tem estatuto e merece-o.
De todas as áreas que a sua prosa cativa apenas merece algum desconforto quando escreve sobre de livros que o marcaram. Não porque não interesse a perspectiva de alguém que sabe do ofício, mas porque Pamuk nada de novo acrescenta à obra de Thomas Mann ou Dostoiévski, por exemplo. Ao invés, torna-se lúcido e original quando ensaia sobre política, nomeadamente, sobre o pedido de adesão da Turquia à UE, ou sobre os conflitos individuais e civilizacionais do povo turco no privilégio de uma ocidentalização da velha Turquia ou no renascimento de um nacionalismo unido à religião.
O seu ponto de vista sobre a Turquia actual, que já lhe valeu algumas idas a tribunal e a crítica permanente de alguns media e do poder político, merece uma leitura atenta e torna-se, a meu ver, indispensável tanto para o eurocrata que se interessa pelo processo de adesão da Turquia à União, como para o cidadão europeu que pensa este facto. Nada perderiam alguns políticos com a leitura destes ensaios inseridos na segunda parte do livro com o título «A Política, A Europa, E outros Problemas por Sermos Nós Mesmos».
Assoma aos seus textos políticos a lucidez de alguém que consegue manter um ponto de vista intermédio entre um estado secular e muçulmano; entre a porta da civilização europeia e a do Oriente, cada vez mais vítima de si e dos seus e menos do ocidente europeu. Este ponto de vista só podia ter nascido da solidão de alguém que olha o Bósforo como um limite aberto e a cidade de Istambul como o projecto de vários impérios e da «transumância» humana.
E quando Pamuk desce às ruas da sua cidade e fala dos seus, ganha-se um miradouro sobre o mar e as gentes, já que realça os contornos e torna visíveis os confrontos ideológicos e culturais. Pamuk é exímio na análise destas macroestruturas, deixando amiúde no texto problemas que nos questionam directamente mesmo quando escreve sobre coisas simples como uma barbearia. Constata, por exemplo, que desde a sua infância até aos dias de hoje as ferramentas de corte e barbear nada mudaram (com a introdução apenas do secador). Pamuk conclui que a não introdução de outros aparelhos faz com que estes profissionais não tenham mudado a sua maneira de falar. Tem alguma razão este escritor: na verdade, na actualização contínua da tecnologia e de alteração dos meios de comunicação promovem uma alteração das nossas formas de pensar, logo de falar, e esta alteração é mais acentuada na comunicação escrita (ver Barbeiros, pg.74. Texto inserido na primeira parte da obra com o título «Vidas e Preocupações»).
Dirigidas aos leitores da obra ficcional de Pamuk, as duas partes restantes «Os meus Livros são a Minha Vida» e «Outras Cidades, Outras Civilizações» têm um carácter mais autobiográfico a que se juntam contos e algumas entrevistas ao autor.

15 setembro, 2009





Numa tradução do poeta e crítico Manuel de Freitas, chega-nos de Espanha (pela mão da Averno) o livro A Caixa Negra que Josep M. Rodríguez (Barcelona, 1976) tinha editado em 2004.
Os poemas que compõem este livro inscrevem-se do lado da leveza, pelo menos do lado da substância que lhe é par ou nos conduz a substâncias que pela sua aparente ou real leveza raiam a invisibilidade. A neve, a escuridão, o obscuro, a luz e o tempo correm sobre um carril poético que a todo o momento se eleva para lá das marcações do real.
A voz poética, essa entidade não instrumental, que se enche de linguagem e se esvazia em poema, confronta-se, sobretudo depois da década de cinquenta do século passado (e mais agudamente depois dos anos oitenta do mesmo século) entre ser um dispositivo narratológico de reconstrução da realidade, unindo a história da língua a cada palavra, e um decalque, em linguagem, de um real que se mimetiza a todo o instante no poema.
Este decalque na leitura inaugura uma qualidade que diminui muitas vezes o poema, já que obriga o leitor a focar-se num referente que, diluindo-se a todo o instante no sujeito-autor, acaba por distrair.

«O autocarro afasta-se
e a praça é uma aranha de seis patas»

ou

«Fechado e mim mesmo,
sem portas de entrada ou saída»

E gostei muito do poema No Impreciso, Incompleto, que aqui deixo na versão portuguesa, por encontrar nele os ingredientes da arte poética deste poeta espanhol.

Sentado à mesa
parto o pão com as mãos

e a toalha
enche-se de migalhas,
como se algo nesse gesto escapasse ao próprio gesto.

Há sempre perda:
até mesmo agora
uma parte de mim não me pertence.

Lá fora também se esfarela o dia:

cada floco de neve é uma trégua.

29 agosto, 2009

O Imprevisível Instante


É cada vez mais difícil encontrar os livros de poesia que se vão publicando. É cada vez mais difícil comprar livros de poesia de autores que publicam em pequenas editoras, em tiragens reduzidas. As grandes cadeias de livrarias há muito arredaram a poesia para prateleiras esconsas, quando ainda as têm. É claro que o mesmo se passa com o ensaio, mas em menor grau. Lembro-me que ainda não há muitos anos a maioria das livrarias que frequentava, pequenas e grandes, punham nos seus escaparates, ao lado da ficção nacional e estrangeira que se ia editando, as obras de poetas que saíam nas pequenas editoras vocacionadas para esta literatura. Sabíamos o que ia sendo editando olhando para essas montras, mesmo em centros comerciais. A clandestinidade onde entrou a poesia talvez lhe faça bem. Talvez seja a única saída perante a proliferação de uma ficção que esqueceu a modernidade (e a que não esqueceu, mesmo vendendo mais algumas centenas de livros, também deve ingressar nessa clandestinidade) e enche as livrarias, qualquer que seja o tamanho.

Tudo isto vem a propósito de dois livros desiguais em qualidade mas igualmente interessantes, publicados recentemente por uma pequena editora (que também edita uma revista de poesia), a Averno. Falo dos livros «Oráculos de Cabeceira», de Rui Pires Cabral e «A Caixa Negra», de Josep M. Rodríguez (com tradução de Manuel de Freitas).

Pretendo agora ocupar-me apenas do livro de Rui Pires Cabral.


O tempo fez-nos distantes. Desde meados do moderno que alguns de nós parecem não habitar o real, entendendo-se este como o espaço de deambulação e percepção do mundo: somos cada vez mais fantasmas. A poesia de Rui Pires Cabral abeira-se deste género em que se conjuga morte e vida e ambas são, no verbo, estranhas.
A salvação que ficou perdida numa época em que dissecar o dia era encontrar um sol determinado a sermos felizes é agora coisa de momentos: eternos retornos que podem fazer do dia uma memória que a escrita pode salvar, relendo-a. Tem, portanto, que ser escrita. A bolha da espuma dos dias é uma descoberta. Uma de cada vez, não toda a superfície que cobre a vida e que se tornou inenarrável.
O cadáver real tem sempre coisas para oferecer, nem que seja o cheiro da sua fermentação ou decomposição. Ou o cheiro do estranho que revive, por sempre o pensarmos morto à distância: «he loved beauty that looked kind of destroyed», relembra o poeta a partir de James Gavin. Todo o real é uma «beleza arruinada» que quer salvar-se pela intenção do poeta. O outro real que o poeta habita é um real clandestino que, em toda a poesia, quer vingar-se do mal.
Apenas um problema: o fantasma é cada vez mais real e habita sem sombra, mas vivo, o mundo. E habita-o pelo lado impraticável que é o da escrita.
Nestes versos repousam as mortes, as épocas, as cidades, os amigos e as estações que só aqui ainda são o que eram. Uma poesia clara, bem composta, sem deslizes que podiam atrapalhar a leitura. Em todos os poemas a possibilidade de uma acção decorrida a lembrar em cada olhar. Mas o poeta, na sua distância genuína, sabe que «ninguém parte de repente / à procura de mais mundo, / ninguém chega por acaso / ao seu nenhum sentido, olhando simplesmente / da varanda». É isso. Mas insistimos, até ser calo a recordação em verso de um tempo que sendo agora está para sempre perdido.

20 julho, 2009

Paul Celan é o início de alguma coisa



(Albrecht DÜRER- Melancolia)

A morte alimenta-se de alegria e a alegria é um caule que a eleva cada vez mais alto até ser sombra em todas as casas. [A morte de Celan começou muito antes essa sombra. Começou por dentro; à sombra da língua, na sombra que as palavras fazem quando as escrevemos e as olhamos de todos os lados. Todos encontramos na leitura uma sombra de verão mas Celan tocava a morte nessa sombra].

Todas as palavras têm uma história. E mesmo as palavras mais simples, como Zeit, têm a dor das águas fundas (do Sena, talvez). Mas não só: também o que releva do não visível, a olho nu, e o que tocam as mãos deixa o coração perdido em despedidas. Mesmo assim o que resta do que se queima – que são todas as palavras em que acreditamos – tem como flor uma «cinza branca», que é o olhar do silêncio. Há uma palavra ainda. Sem grafia. «Sobre verde carregado»: a janela é uma evasão, um «rasto luminoso» de vida e uma mão a chamar-me. [Celan diz mãe antes do último gole de água suja].

O mundo não tem superfície que sirva à mão, volume para uma carícia no tempo. A superfície está sempre presente no olhar, nos caminhos que percorremos em distracção. Só o deserto tem vida, o deserto que o «azul inunda», até ser desperdício o pensar. [Ó mãe, por que escrevem eles poemas na minha língua? A palavra mãe, ou amor, tinha que soar do mesmo modo que a minha? Tem que ser igual a gramática dos assassinos?].
Crescemos como queremos nas palavras: pele com pele, casca com casca até à sem idade. Tudo é um grito pela existência e por um sentido.

O Trivial e a Tragédia


(Athanasius Kircher, Musurgia universalis (1650))
Tal como a imagem tem produzido ao longo dos tempos um bloqueio na diversão emocional, ao constituir-se numa transparência que é, em muitos aspectos, nefasta ao entendimento do que lhe está à frente, também a vida contemporânea – apoiada nesta transparência – vem sendo ocupada pela trivialização.
O trivial e a transparência não pertencem ao mesmo campo semântico mas são ambas consequência de uma «secura» que se instalou na relação humana; uma secura (na maioria das vezes óptica) que esteriliza o lugar das possibilidades de um acrescento do mundo a partir do que sustenta o explícito. Só a obsessão significante destas duas palavras (transparente e trivial) tem produzido livros e leituras que vão de encontro ao progresso da arte.
Desconstruir – verbo usado aqui longe de qualquer construção filosófica – foi sempre o caminho da metáfora artística. E este caminho, embora se pense ilusório e simulado, não é mais do que uma aproximação e identificação do que sustenta a representação (numa pintura ou num romance, por exemplo). O que observamos cronologicamente, do início do moderno ao contemporâneo, é um percurso da imagem para o que a sustenta (a cor e a palavra, por exemplo). Assim se fez a melhor arte do século passado. Só que este percurso não foi feito por todos, pelo menos aqueles que utilizam a hegemonia da visão, obrigando a que as coisas denotem histórias, linearidades, em suma, harmonia.
Se os olhos não pretendem sair desta linearidade, o nosso cérebro há muito dela saiu. Contar uma história como o faziam os nossos clássicos parece ser, à chegada, uma ilusão sustentada pela trivialidade e, na maioria dos casos, pela excessiva transparência que convoca a opacidade: a potência da transparência do objecto embate no que é opaco.

09 junho, 2009

Novas Mitologias, ou o condomínio fechado do café



"Elle est petite mais riche à millions, elle est ronde mais légère, elle a des tas de robes qui bruillent, tout le monde en est fou:

Jennifer Lopez? Non, la capsule Nespresso".

Alix Girod de l'Ain, La Capsule Nespresso, in Nouvelles Mithologies, ed. Jérôme Garcin, Paris, Seuil, 2007.

07 junho, 2009

AOS OLHOS DE UM DEUS DISTANTE


Os Olhos de Himmler
Rui Nunes
Relógio d’Água Editores, 2009


Sou culpado. Somos todos culpados. Tudo o que fazemos chama-se morte: um gesto, uma palavra, uma casa


A Viagem, que é o nome do primeiro capítulo deste livro de Rui Nunes, começa como um sopro e uma luz entre arbustos num deserto e acaba no mar. Thalassa. Thalassa., com que termina o livro é a palavra contida no grito dos heróis conduzidos pelo jovem Xenofonte entre Cunaxa e o Ponto Euxino quando avistaram o Mar Negro. Depois de uma longa travessia, fugidos da guerra, a visão do mar confirmou o regresso àquele elemento que eles tão bem conheciam: naquele líquido estava a liberdade e o cheiro da pátria.
É de libertações que trata este livro: da memória do crime (no caso de Andreas, o médico soldado, que se arrasta pelas ruas como um indigente), a memória de um paixão que se transformou em ódio (no caso de Greta que vive agora um lar de idosos, em silêncio com o mundo). Mas, sobretudo, a libertação de um tempo que dói.
A viagem de Andreas pela sua memória num real que já lhe é estranho, é a viagem de um homem em confronto com um tempo «que ora se alarga ora se comprime» (pg.15), tentando reconhecer no corpo que balouça um destino. A narrativa descreve os dois mundos em confronto minuciosamente, da cor ao som. O pormenor é neste livro, como noutros de Rui Nunes, o que naturalmente é o inexplícito, pormenores que fixam as personagens ao mundo. Não uma paisagem ou um pôr-do-sol, mas um insecto no seu voo ou uma pedra a rolar e a embater contra outra. Uma teia cerzida onde se monta a realidade que raramente é avistada. Nesta obra, a teia é produzida tanto pelas personagens como pela narração, em palavras que transportam a sua própria história e que ajudam a saciar a fome desse animal que é o mundo.
Resgatadas as memórias, contadas para poderem ser uma vida alinhada como outra qualquer, fica-se mais pobre, cada vez mais pobre até ao desânimo e ao irreconhecimento. Até ficarem apenas algumas palavras, em letra minúscula, como deus e corpo.
Neste polifonia, nenhuma palavra está fora do sítio, já que cada palavra é também ela o seu destino. Se alguma estivesse desalinhada a teia cederia ao primeiro contacto da voz. É preciso que todas as palavras sejam aqui inteiriças para serem totais, para se transformarem na única possibilidade da invenção.
As vidas de Andreas e Greta crescem para trás com a leitura, sem linearidade, são novos, velhos, jovens, felizes ou infelizes, mas crescem do interior das casas para a rua, e da rua para os lugares mais recônditos da casa, aqueles que usamos para os segredos da infância ou da juventude. E estes lugares vão aos poucos sendo inundados de mortes, de crimes, de ódios. Como se a vida do Homem fosse uma sucessão de desvios aos actos que poderiam levar à felicidade: «não invejamos unicamente o poder, o dinheiro, a felicidade ou a glória. Invejamos também o sofrimento, a doença e a tristeza […] invejamos o que é intenso» (pg.58).
O livro é uma teia de memórias que se atravessa como se atravessa lentamente um campo acabado de semear. A aridez é apenas uma impressão. À lupa aquele chão de palavras explode em cada árvore, ave, semente, fruto e mesmo no desenho que os pés gravam no chão. O resto é uma mancha que engole o mundo e o seu significado. Tal como os olhos de Himmler, «olhos de cal» (pg.98).
E aqueles que se conheceram há muito, que se amaram e se odiaram, voltam a juntar-se na velhice sob o mesmo tecto. A casa é já um sepulcro. O mundo é uma visão da alta janela da casa junto ao rio (austríaco), uma cor a desaparecer no silêncio. As mãos de Greta no pescoço de Andreas cumprem o destino e o sonho do deus distante que mirrou em nós.

07 maio, 2009

Continuação do último parágrafo do post anterior


Nota: falou-se hoje muito de imigração. Veio um jornal dizer que diferentes sectores da sociedade estavam contra a imigração (1ª página: sindicato, patrões e governo: todos querem menos imigrantes). Propuseram-se regras de entrada, que alguns políticos muito apreciam.

Também a imigração é um ruído. E o que temos feito ao ruído desde sempre? Afastamo-lo. Mas o ruído da imigração é o ruído da língua e dos costumes. Os que se integram, integram na sua paisagem sonora o ruído de outra língua e o da sua na paisagem dos outros. Ora, como vimos, esta é a única forma de (para além das que relevam do normativo legal ou das pulsões individuais) enriquecer distintamente a nossa paisagem sonora, torná-la mais conforme ao mundo em que vivemos.
Com a imigração legal e integrada aprofunda-se também a noção de democracia e a sua «intimidade» social.
No fundo, as paisagens sonoras alteram-se de um modo por vezes implícito, mas sempre surpreendente, porque existe o ruído dos imigrantes.

20 abril, 2009

Gosto de pensar que o céu nos olhos educados dos ocidentais é um problema grego





I.
Temos as imagens que nos chegam. Têm origem nas catástrofes naturais que assolaram algumas áreas do planeta: China, Birmânia e Itália. Vemos corpos sem vida expostos ao sol; à beira de um rio na Birmânia; e corpos vivos sob a cor e o peso do cimento. Vê-se-lhes os olhos e os lábios cobertos de poeira. Vê-se-lhes a vida. Vê-se-lhes a alma. Pois a «alma mora no ponto onde o eu se decide» a permanecer vivo. Depois do nascimento precisamos de um segundo nascimento para sermos novamente dotados de alma, diz-nos Michel Serres: damos a alma ao lugar solar no nascimento, para a adquirirmos, depois, com a salvação do nosso corpo. No risco que corremos para nos salvarmos, depois do risco que corremos num facto do mundo, nascemos outros, parcialmente outros ou sempre outros. Só agora compreendi. Pela linguagem de Serres compreendi como se fosse coisa nova.
Pela mão podemos encontrar no corpo máquino-vertebrado o que se diz da alma. O dedo torna-se mundo e o lugar do corpo que toca enche-se de vida, de si, pois entumece-se com a «alma local» [mas sempre que os lábios se tornam conscientes no exacto lugar e momento do toque do dedo, este perde-se, regressa ao mundo, a um lugar de silêncio sem nome]. A alma global que convoca todas as outras apenas a podemos encontrar num lugar próximo «do espaço da emoção» (pg.18).
Um dia seremos nada, já que mortos ou o nada do cyborg com dedo maquinal a tocar o lábio, pálpebra da máquina. Isto é uma ficção humana onde o lugar da emoção e da tatuagem é imprescindível e possível. Porque a tatuagem nas dobras e superfície da pele é o máximo táctil do intacto que é a alma.

II.
Hermes, o mensageiro (hoje em dia a informação e a comunicação em rede) matou pela música Argo Panoptes, o que tinha o corpo coberto de olhos, o espião supremo, o que vigiava mas não punia Io (a amante de Zeus transformada em vaca e depois já em seu corpo rainha do Egipto). A pele de Panoptes foi utilizada para compor a cauda do pavão de Hera (mulher de Zeus). Em conclusão: Hermes matou o princípio da teoria, a visão, para tudo unir em rede e comunicação. Mas também esta não prescinde da visão já que a escrita é visionária.

III
Passamos a existir enquanto língua. Já não podemos falar, isoladamente, dos cinco sentidos. Eles só são em linguagem: «o verbo ocupa e anestesia a carne» (pg.54) ele se fez carne. E quando no ruído a palavra é esquecida, o corpo quer soçobrar porque está habituado às palavras que o curam de ser só interior. Faça-se então mais ruído e toda a pele e a sob-pele são agora um corpo intenso. Se o ruído parar as palavras voltam. Mas é preciso que elas fiquem suspensas, por instantes, sem nenhum encontro com a carne. Sem fala. É isso que o corpo quer dalguma música contemporânea.
Voltemos à pele ouvido, a Panoptes que tudo vê agora na cauda de um pavão. A pele é ouvido e superfície táctil. Apenas dois sentidos no mesmo órgão que é a pele: audição e tacto. Não interessa lembrar ou pensar, não tem interesse a linguagem para que se possa constituir no momento um território que seja nosso, só nosso e variável. Não precisamos de ver, basta a acusmática para que o corpo se feche ao mundo e se reconstitua. Só assim nos podemos misturar, já que os olhos não podem misturar: são o lado de fora de nós.
Ficamos pele e ouvido. Tudo impresso como nas dobras e vales do cérebro. A imagem das suturas cranianas revelam-se também no que protegem e, ao longo do tempo, na pele.
A pele não tem centro, é um sistema de comunicação e informação. Já não precisamos de luzes nas margens para a nossa rota, não precisamos de faróis na noite que são pontos centrados na vasta escuridão. A pele coberta pela inscrição natural é visitada pela alma, diz-nos Serres (pg.72).

IV
Desde sempre a teoria esteve unida à visão, na e com a palavra. Mas também a intuição, como nos mostra Kant na sua Crítica da Razão Pura. Isto quer dizer que o conhecimento é um problema de sólidos. Só que, desde os fins do séc.XIX, o percurso do conhecimento desviou-se, ligeiramente, para o líquido e deste para o ar («Tudo o que é Sólido evapora-se no ar», diz-nos Marx por Marshall Berman). Caminha-se na direcção do fluido (Serres, pg.78), do som, do ar e da mistura: um novo tecido, portanto. E sentiu-se que esta alteração era benéfica para a saúde. Se o ruído é o princípio da cura (mesmo em medicina, já que todos os órgãos têm os seus ruídos e patologias) a linguagem com que vimos cerceando o conhecimento é sempre o avolumar da morte já que prescinde de muitos sentidos, sobretudo do tacto e da audição, que unem o corpo à sua circunstância; a linguagem «anestesia os cinco sentidos» (pg.87).
Nota: mas o ouvido não precisa de linguagem. Escutar tem que ser uma acção que rompe a barreira da linguagem. Não é por acaso que aquele que fez da linguagem o lugar do conhecimento, Sócrates, no instante da sua morte, quando a cicuta lhe tingia o corpo exclama: «o som destas palavras […] não deixa ouvir nada». Mesmo assim solicitou ao seu amigo Críton para falar, ao que este respondeu: «Não, Sócrates, não tenho nada a dizer». Para que Sócrates escutasse o que vinha. «Então deixa isto, Críton, e sigamos este caminho, visto que é por ele que a divindade nos conduz» (Críton, último diálogo. Utilizo tradução de Manuel de Oliveira Pulquério para Apologia de Sócrates/Críton.

V
Para Michel Serres existem três fontes de ruído. Primeira: o organismo enquanto caixa negra que guarda os ruídos dos séculos e que os evidencia na necessidade. Com este ruído atinge-se o silêncio (que em meu entender já não existe) e a linguagem. O ataque à linguagem pelo ruído é o mais feroz e violento de todos, mas, e ao contrário de Serres, torna mais sadio o corpo, pois tem necessidade dele para acrescentar territórios, sintomas ou, simplesmente, desviar-se, por instantes, de uma coacção do tempo. Segunda: o mundo sonoro é também fonte de ruído. É uma noção de ruído enquadrada na ideia que a natureza faz barulho para sobreviver. Terceiro: o colectivo. O ruído protocolar das comunidades: «o ruído define o social» (pg.105). Mas define-o pelo lado da sua organização e inter-relação. O ruído é aqui e sempre uma distância. E esta distância será menor ou nula no processo de imersão. Sempre que deixamos de ouvir um determinado ruído é porque já faz parte do nosso espaço audível e, por aí, do nosso território.
O humano aprendeu com o ruído duas coisas: que reúne espaços e tempos distintos; que assusta que não reconhecem pelos ruídos o território (o ruído é inoculador do estranho). Por esta razão a guerra faz barulho e os antigos exércitos antigos levavam o ruído nas primeiras fileiras: se para os da casa era «sinal de união»; para o inimigo era o estranho e, por isso, o medo.
Não é, no entanto, o ruído que disperso pelo mundo pelas técnicas humanas torna incurável o espírito e ameaça a natureza, já que ela é também origem e fonte de ruído. As espécies ameaçadas, ou que se extinguiram, são aquelas que não conseguem constituir novos territórios à «vista» do estranho ou da alteração dos seus habitats, ao contrário dos humanos que conseguem, pelo que é audível, recuperar lugares. O que a natureza nunca vai entender é que o ruído humano é informação, coisa que o humano sabe, desde que Hermes venceu Argos Panoptes.
Tudo faz ruído. A voz, por exemplo. Há, no entanto, que afastar, como afastamos das nossas casas, o lixo ruidoso; aquele que coage sobre a nossa liberdade e capacidade de constituir territórios novos ou acrescentar espaço ao nosso território privado.
No princípio está o ruído, depois fez-se linguagem e uma nova camada sobre o ruído surgiu, o sentido. Mas antes «de ter sentido a linguagem faz ruído: o ruído pode dispensar o sentido, mas não o inverso» (pg.117). E depois uma nova camada, a escrita, que pretende suprimir o ruído pela luz, pela linearidade, mas tornou-o global, contaminando todas as línguas. A escrita como tecnologia humana para a comunicação levou o ruído a difundir-se pelo mundo «literário» (como os turistas ocidentais em mundo selvagem). E o mesmo acontece com a música: «a linguagem precisa de música; a música não precisa absolutamente de linguagem (e significar e decifrar na música é a sua morte). A música precisa de ruído; o ruído não precisa absolutamente da música» (pg.121). A música, tal como a escrita, leva na sua cauda o ruído, o sem sentido e a desordem.
O que temos vindo a constituir (no conhecimento humano) é sempre uma passagem através do ruído. Só que nesta passagem, ao ultrapassar-se, levamos na cauda parte desse ruído das margens. Não foi por Ulisses (na Odisseia, Canto XII) ter obrigado os seus marinheiros a colocarem cera nos ouvidos e a atarem-no ao mastro, que se perde o ruído doce das Sereias. Ele, com os ouvidos destapados, tinha que ouvir o doce canto e levá-lo como ruído, para o outro lado, já que esse canto representa o contacto com o mundo, a que o homem não se pode furtar, embora algum conhecimento tente evitar este contacto com o banal. Mas, ao contrário do que afirma Serres (pg.123) ele não vence, o mundo banal é que vence. Por todo o lado, em todas as paredes, prédios, ruas e esquinas as passagens fazem-se sempre através do ruído. A harmonia que Leibniez vê no mundo e originada em deus é agora uma obrigação secular de convivência e conformidade. Fragmentado, o mundo vive agora sobre um ruído de fundo que, tal como a cola, mantém unida a «obra».
As sociedades, tal como o corpo, mantêm-se unidas pelo ruído que é um fundo desde que a visão irrompeu hegemónica no conhecimento humano e na metafísica ocidental. «Quem não tem o dom da vida faz filosofia» (pg.131). É exagerada esta afirmação de Serres, mas a concepção da filosofia andou (desde a história de Tales de Mileto) afastada do encontro com a vida, e nela, com o furor e o ruído.

VI
Todo o corpo é um tímpano global: ouvimos por toda a parte do nosso corpo. O corpo é uma caixa de absorção sonora e de ressonância. E se os olhos nos endireitaram; se por eles ganhamos a postura erecta que temos hoje, os ouvidos cedem o equilíbrio ao corpo. Só quando o corpo se coloca na posição de escuta é que nos dobramos, tornamo-nos flexíveis. Isto significa que a tentativa de ocupação, por imersão, de um espaço audível faz alterar a postura erecta. Dobrar o corpo para a imersão (seja ao telefone, microfone ou junto ao altifalante) é conduzir o corpo em dobra para a escuta e para a imersão no sonoro.
O corpo quer obedecer a essa escuta; quer fazer parte do fluido: nisto ainda somos peixes. E querer fazer parte desse fluido é deixar-se conduzir até ao som e, por ele, construir o desenho da fonte sonora. A diversidade da escuta serve para isso: empreender uma construção a diferentes níveis, pois também a natureza e constituição do nosso ouvido interno e externo é distinta. Ressoa já no nosso ouvido interno não apenas um som mas uma estrutura com que o mundo se pode ver de uma maneira diferente. Depois de muitos obstáculos e filtros o som chega finalmente a um lugar central onde se ergue a sua imagem: «a caixa, útil ao conhecimento, serve a vida. Eu a sigo. Moro nela» (pag.143). Na maioria das vezes sem língua.
Calar é, hoje em dia, um verbo importante: calar, porque só assim podemos entrar no processo de escuta; calar para que a quantidade do discurso seja menor mas se reconheça nele o mundo. E só depois, sim, ajudar a erguer esse mundo. Falar se parar e não se aperceber que enquanto fala outro significado vai sendo construído pelo discurso do outro: o rumor não cessa.

VII
O território sonoro que construímos e vamos estabelecendo ao longo da vida e do dia, torna-se pela imersão em coisa nossa, íntima: coisa natural.
O desvio do nosso percurso para novos territórios faz de nós seres em constituição. Para um citadino a ida ao campo é a imersão num novo território. Mas este espaço acústico contém sons e ruídos que não fazem parte do seu território urbano. É, por isso, fácil instalar-se a melancolia e o desassossego. Os sons da natureza são, para estes ouvidos, coisa artificial, enquanto o bulício da cidade lhe é natural. Esta passagem faz-se sempre através dos sons. Os sons dos animais e insectos no campo é coisa artificial para o urbano, enquanto na cidade o que é artificial é natural. Entendemos assim a ligação da adolescência (e não só) aos novos meios de comunicação.
Mas a cidade e o campo deixaram de ter, neste aspecto, uma separação nítida. Há lugares no campo (em vilas e aldeias) que constituem a mesma relação com o artificial. Só em habitação dispersa é ainda possível sentir-se uma nova imersão e a constituição de efeitos que podem alterar o nosso humor.

A relação das paisagens sonoras

Como todo o corpo é ouvido; como estamos imersos em territórios sonoros, quando nos deslocamos, deslocamos connosco o nosso território (coisa íntima). E é este confronto que cria pânico, medo e melancolia. E para recompor o território leva o seu tempo, podendo ser mesmo o resto da vida. Por isso a melhor forma de recompor um novo território deve fazer-se (ao contrário do que pensava, em parte, Ulisses) pelas passagens que são os ruídos e o rumor. A substituição faz-se, lentamente, por imersão: o que à partida é artificial deve tornar-se natural pois só assim se torna elemento do nosso espaço acústico. A melancolia persistirá enquanto todos os sons que preenchem a nossa habitação não nos forem naturais.

(as páginas acima referidas são do livro Os Cinco Sentidos – Filosofia dos corpos misturados, de Michel Serres)




Francis Bacon, Portrait of Henrietta Moraes, 1965

19 abril, 2009

Pedro Chorão


Se forem para os lados do Fundão, desçam a central avenida da Liberdade, e mesmo ao fundo, junto à estação, encontram um edifício que já foi fábrica e agora é lugar de cultura: a Moagem. Se entrarem, podem apreciar uma retrospectiva de 35 anos de pintura de Pedro Chorão. Um trabalho interessante. Aqui ao lado deixo-vos o que pude trazer.

07 abril, 2009


Depois de arrumar o que estava por arrumar voltei.

15 fevereiro, 2009

O lugar


Nestes tempos de «crise» voltemos aos gregos; ao lugar onde ela começou.
O meu conterrâneo Albano Martins junta-se a outros que têm vindo a traduzir as obras literárias e filosóficas mais marcantes do período helénico.
Como se diz em badana, «esta antologia tem como matriz de referência duas obras publicadas em França na segunda metade do século passado: Anthologie de la Poésie Grecque, de Robert Brasillac e La Couronne et la Lyre, de Marguerite Yourcenar.»
Ao todo são passadas em revista obras de Homero, Hesíodo, Safo, Pitágoras, Calístrato, Sófocles e muitos outros, acabando em Paulo Silenciário.
Há nestes autores e sábios muito dizer que nos ajuda a repensar o estatuto do homem contemporâneo, suas virtudes e defeitos.
Deixo aqui um pequeno poema de Eurípedes, Maldição sobre Esparta:



Ó habitantes de Esparta, os mais odiosos dos mortais
para todo os homens, pérfidos
conselheiros, reis da mentira,
urdidores de males, mentes retorcidas,
coisa insana, desconfiando de tudo em redor,
vós prosperais injustamente na Grécia.
O que falta entre vós? Não tendes
o maior número de crimes? Não sois cobiçosos?
E não sois sempre apanhados a dizer
uma coisa com a língua, pensando noutra?



(Andrómaca)

03 janeiro, 2009

A FOME



Fome, de Knut Hamsun
Edições Cavalo de Ferro, 2008

Deve-se sempre ler na língua original. Assim nos ensinaram os mestres. Se não pudermos, por não sabermos, devemos ler numa língua que o tradutor e o leitor dominem. Eu sei que lemos russos, gregos, chineses, japoneses e outros autores de línguas mais ou menos desconhecidas do leitor português a partir de traduções feitas do inglês, francês ou alemão. Lemos, portanto, livros que não correspondem, precisamente, à sua identidade e história. Pouco importa nalgumas circunstâncias.
Quando ouvi falar de Knut Hamsun eu sabia-o apenas na língua francesa (e desconhecia a tradução de Carlos Drummond de Andrade). Esperei lê-lo em português a partir do norueguês, o que agora acontece. Sult (Fome) está aí, num bom trabalho de Liliete Martins, a que faltou (pena! Numa editora que tem e.e.cummings como patrono) uma revisão mais cuidada.
O livro «Fome» não pode ser lido sem o situarmos nas duas últimas décadas do século XIX, ou se quisermos ser mais precisos, no ano da sua edição: 1890. Temos que, insistentemente, esquecer (eu diria, apagar) alguma da grande literatura do século XX para melhor entendermos este livro. Estar lá e nunca avançar para os sucessores. Temos que permanecer, com esforço, eu sei, naquela época dourada do século XIX e esquecer, propositadamente, todo o século seguinte e o actual.
Como pôde um homem em Oslo (Kristiania, naquele tempo), naquele fim de século, conceber este livro dá-me arrepios. Teve que se partir (ou ver que os outros já se partiam, fendiam, bem como toda a estrutura moral e ética), fundir-se para depois emergir de uma natureza já a fugir de si e tornar-se irmão em sangue desse famoso escrivão Bartleby (de Melville) para se tornar «o homem da multidão» (de Edgar A.Poe): alguém a querer ser outro na radicalização da sua situação, ou ele-mesmo; a descrever-se como se o indivíduo pudesse ser uma história e, melhor, que essa história pudesse ser escrita (o que era impensável antes da segunda metade do século XIX). [A invenção dos aparelhos de reprodução nessa época dourada trouxe (ou é sinal, para outros) uma ruptura do sujeito com o mundo que é hoje consensual. Abundam neste livro não a descrição da cidade, das suas ruas e gentes, mas os sons de alguém que, hóspede (como é o nosso narrador/personagem) numa pensão da cidade, reparou que abrindo a janela podia ouvir o mundo, já não apenas fixá-lo fotograficamente, mas ouvir o som moderno que passava].
Vamos ao livro. Alguém descreve o seu quotidiano e as suas afrontas. Alguém quer viver, melhor, escrever, e a Fome emerge. Tinha tudo para se saciar mas, por uma ou outra razão, não o fez: há imperativos que até a indigência reconhece. A vergonha e o medo pertencem à natureza deste homem mas não a culpa. As contínuas falas com Deus resultam do caminho de alguém que erra mas não sente culpado desse erro (ao contrário doutros heróis). Nunca quis ajuda que não proviesse do seu ofício, da sua escrita. Podia ter uma senha de refeição, um adiantamento mas, exceptuando uma vez, nunca quis. Queria ser íntegro para viver a fome. Creio que é esta a principal ideia do livro. Já que não podia ser íntegro para ser escritor, a fome não deixava (um círculo), queria ser carne para a miséria. Por mais que avancem os dias, a fome volta sempre para se alojar na sua pessoa. Um pouco como a Náusea. Aliás, fome e náusea andam juntos neste livro, não noutro século.
O corpo foi-se iludindo em muitos: homem social, jornalista, pai de família, faminto, mendigo, ladrão, amante e, por fim, emigrante.
Quantos nomes para o Homem. Abençoada literatura.

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