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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

20 outubro, 2012

Outra despedida

Acompanhei a produção poética de Manuel António Pina a partir de «Aquele que Quer Morrer» (Na Regra do Jogo, 1978) e só depois cheguei a «Ainda não é o fim…» (A Erva Daninha, 2ª edição, 1982). Soube-se agora do seu desaparecimento prematuro. E lembro o seu poema «algumas coisas» onde fala do peso da memória que se «instala em todas as coisas de dentro para fora». Poucos poetas nas últimas décadas trabalharam tão afincadamente a memória, literária e individual, como Manuel António Pina. Havia na sua poesia o desejo de reunir o que na sombra ou no chão é fundamento do que é explícito, já que aquele que está vivo (que é, afinal, aquele que quer morrer) «dança sobre os destroços de tudo». É grande e profundo este levantar em verso «pequenas frases» que dão viço à vida. Sem elas o deserto crescia para fora, e ai daquele que traz em si desertos, lembrava Nietzsche. Mas aquele que quer morrer, lembra-nos, é aquele que quer conservar a vida. Porém,


Os tempos não vão bons para nós, os mortos.

Fala-se demais nestes tempos (inclusive cala-se).



Lisboa a ver o Porto, 19 de Outubro

16 outubro, 2012

Descida

Rasga a noite
uma voz clarão
que separa o que compõe
o mundo.

01 junho, 2012

Em memória da minha filha Francisca

Tal como há dez anos também agora as cerejas se mostram vermelhas nas árvores. Vêem-se ao longe, dos caminhos que nesse dia não chegamos a percorrer. Ficamos muito antes quando ela já levava a brincadeira nelas: correr entre as cerejeiras, chegar aos ramos que dão para os cinco anos; dizer «papá posso comer assim?». E eu a dizer que é preciso lavar. Ela conhecia bem o sítio da água.


Inquieta como sempre queria chegar antes de termos começado a viagem. Inquieta de luz. Que via a sua inocência que nós não vemos? «Posso andar no tractor do tio?» perguntava a Maria, e ela que não. Mas foi só da primeira vez. Depois quis subir. Sentiu o que é a brisa que atravessa a Gardunha e o cheiro forte das árvores. Nesse ano não. Ficou-se distraída num lugar da estrada, naquela por onde poucos já passam. E todos os anos nesta época é assim, e todos os dias é assim: nasce um pomar de cerejeiras só para ela, com água fresca e tudo. E nasce em mim uma árvore às avessas que é só dor.

Mas Francisca, já não existe a quinta, por lá passa agora um túnel húmido e sombrio, cortaram todas as cerejeiras. E também a água foi levada para outros lados. E a vida.

13 maio, 2012

UMA POSSÍVEL HABITAÇÃO

O livro Barro (Relógio d'Água, 2012) é na obra de Rui Nunes um elemento singular. A palavra «barro» que escolheu para título reflecte essa singularidade: por um lado é matéria-prima, arquétipo narrativo que «enforma» alguns dos seus livros; por outro é matéria autobiográfica, remetendo para o avô oleiro. O livro compõe-se assim em duas vertentes: a primeira dá-nos conta dos principais temas que constituem a obra já vasta deste autor (o primeiro livro, «As Margens», é de 1968); a segunda acrescenta-lhe as suas memórias, algumas delas inscritas noutros livros do autor. Este trabalho é feito num cerzimento metódico, unindo fios dispersos, unindo tempos e palavras que lhe são elementares. Assim se faz a literatura.


Um dos temas recorrentes na obra de Rui Nunes é a noção de pátria, agora identificadas: duas da infância, três do homem adulto. Pátrias sensíveis é do que falamos. A primeira é terra e casa, na Beira Baixa, que vem a nós sob uma luz de verão, intensa, que coagula no limiar e torna escura a habitação. Por isso o campo e a deambulação. Enchem as páginas desta pátria, bichos, pó de barro, chão e brincadeiras. E nelas os sentidos projectam-se até aos mais pequenos movimentos e segredos.

Depois da cegueira da luz, ao rés do chão, a outra pátria tem uma brisa marítima, atlântica, lá para os lados de Setúbal. Aqui tudo é diferente: é o mar que explode de vida e enche de luz a habitação. Temos depois mais três pátrias: a de Wachau no Outono, onde se vê, a partir do Danúbio, os restos de uma civilização e «um rio perdido entre a nascente e a foz». Mais a norte Kirkenes, terra vertical sobre o mar, um arrepio profundo. E, por último, a que defende uma outra noção de pátria para os homens: uma pátria sem território apenas corpo, nómada, com o nome próprio de «Viagem».

Este livro está organizado como se fosse um livro de cânticos, aqui e ali intercalados por um refrão. Para decorar, conforme os escritos mais antigos, os primeiros. E como canção, a escrita imprime uma determinada velocidade, ajudada pela versificação. A matéria é, como vimos, a vida; pontos de luz que se unem vindos do passado e se aconchegam no presente que tem sempre uma palavra a dizer ou a acrescentar um hálito de tristeza. Há nesta matéria, substância suficiente para uma definição autoral de escrita e literatura.

O «Faça-se» é aqui não a mediação «ad-hoc» mas a margem da língua que ainda toca no mundo: uma margem antiga, primégina, quando a linguagem quis ser a ponte entre o que é humano e a perdida physis. Se a linguagem primeiro e depois a escrita afastaram o homem da sua natureza, é possível ainda encontrar nesta língua de Rui Nunes um uso em criação e não apenas em mediação. É isso que deve fazer a literatura: encontrar essa margem de contacto, na linguagem, entre coisa humana e natural: «todas as palavras cortam, à nascença. Por isso, / obrigá-las continuamente a renascer, / embora seja também contra nós que renascem.» É necessário, por isso, arruinar a sintaxe, antes que palavras «inventadas» se interponham e tornem insignificante a língua e a vida. Talvez «o fim de qualquer escrita seja a sua destruição». E por esta destruição se destroem também palavras inventadas sobre a ruína, como «deus».

Nunca se sabe o lugar de contacto, nem nunca podemos regressar pelo mesmo caminho. Não há sinais para o retorno. Nesse lugar pode erguer-se sempre uma habitação, mas precária, radicalmente humana, mas sempre pobre: «e dessa unidade tão débil, da veemência dessa pobreza, se fez, se faz, um texto.

Sem pátria. Sem poder.

Quase sem nome.»

Sinto-me mais vertical com livros assim.

El Peine del Viento, Eduardo Chillida, em San Sebastian


05 maio, 2012

Orquídea

A única planta que tenho em casa é uma orquídea. E todos os anos em meados de Abril o verde mancha-se de lilás. Este ano nasceram-lhe cinco bonitas flores. Todos os anos parece haver mais uma. Depois é vê-las todos os dias quando chego a casa. Mas em cada três dias cai uma flor. E hoje, dia 5 de Maio, caiu a última que não guardei. E eu fiquei a olhar aquela haste que queria encher o mundo, a ficar cinzenta e a pensar murchar. E a pergunta que faço é: o que seremos - eu e planta - daqui a um ano, quando a planta se lembrar de ser flor outra vez?

18 fevereiro, 2012

Sentir













Autor: António Salvado
Obras: REPOR A LUZ e AURAS DO EGEU e de todos os mares
Editora: Fólio Exemplar
Ano/Cidade: 2011/Lisboa

Há poetas que vêm connosco desde sempre. Perdidos na infância, ambos. Lembramos nomes. Às vezes ainda não como criadores de poemas e obras mas apenas um nome. Depois chegamos àquela idade que se deseja ler sem sabermos a causa. É aqui que surge António Salvado. Como outros, mas no meu tempo apenas, limitou uma pátria sensível e sobre ela escreve. Se este texto tivesse outro alcance, podia falar de uma cultura sensível, aquela que permanece inviolável nas comunidades beirãs: um olhar muito próximo da natureza que ele soube captar como poucos; um ouvido apurado para o fazer dos insectos se é verão; o itinerário das águas e a metamorfose das flores. E como todos os que chegam à sua idade (Castelo Branco, 20 de Fevereiro de 1936), sente-se agora nos seus poemas um outro alcance, uma espécie de ética poética que quer transmitir aos seus leitores. E por baixo, mesmo no lugar em que o seu sangue tinge as ribeiras, o assombro constante de quem pela primeira vez viu crescer e definhar uma flor.
Os poetas lembram-nos mais que outros o que é estarmos vivos, mesmo que cercados pelo inverso.
«Ó Cesário, tu que amavas a cidade e detestavas o campo, deixa que alguns corações repousem no zumbido sazonal da paisagem.»


Aquilo que direi…
[…]
E só nomes gerados pel’ausência
Aqueles que ouvirás:
Com sílabas de amor fora do tempo
E conformando um comovido espaço.
(do livro Repor a Luz)


Agora que faz anos, daqui lhe mando uma abraço.

11 janeiro, 2012

A CRIANÇA

Escrever palavras, com um dedo de criança
para ficarem soltas no ar, «como alegria e mundo».
Escrever outras menos precisas, «como amor»,
só por descuido,
pois muitas mirram e morrem
sugadas pelo ar da manhã.

Mas o homem não sabe escrever de outro modo.
Nunca teve outro utensílio
apenas o dedo indicador com que desenha
as letras bonitas e redondas
que viu nos livros da casa.

«Desenhar casa», lembrou-se
e surgiu uma cidade
mistura de outras cidades do Sul.

Olhou para onde nunca esteve
e esperou que o ar a engolisse por inteiro.