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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

03 janeiro, 2009

A FOME



Fome, de Knut Hamsun
Edições Cavalo de Ferro, 2008

Deve-se sempre ler na língua original. Assim nos ensinaram os mestres. Se não pudermos, por não sabermos, devemos ler numa língua que o tradutor e o leitor dominem. Eu sei que lemos russos, gregos, chineses, japoneses e outros autores de línguas mais ou menos desconhecidas do leitor português a partir de traduções feitas do inglês, francês ou alemão. Lemos, portanto, livros que não correspondem, precisamente, à sua identidade e história. Pouco importa nalgumas circunstâncias.
Quando ouvi falar de Knut Hamsun eu sabia-o apenas na língua francesa (e desconhecia a tradução de Carlos Drummond de Andrade). Esperei lê-lo em português a partir do norueguês, o que agora acontece. Sult (Fome) está aí, num bom trabalho de Liliete Martins, a que faltou (pena! Numa editora que tem e.e.cummings como patrono) uma revisão mais cuidada.
O livro «Fome» não pode ser lido sem o situarmos nas duas últimas décadas do século XIX, ou se quisermos ser mais precisos, no ano da sua edição: 1890. Temos que, insistentemente, esquecer (eu diria, apagar) alguma da grande literatura do século XX para melhor entendermos este livro. Estar lá e nunca avançar para os sucessores. Temos que permanecer, com esforço, eu sei, naquela época dourada do século XIX e esquecer, propositadamente, todo o século seguinte e o actual.
Como pôde um homem em Oslo (Kristiania, naquele tempo), naquele fim de século, conceber este livro dá-me arrepios. Teve que se partir (ou ver que os outros já se partiam, fendiam, bem como toda a estrutura moral e ética), fundir-se para depois emergir de uma natureza já a fugir de si e tornar-se irmão em sangue desse famoso escrivão Bartleby (de Melville) para se tornar «o homem da multidão» (de Edgar A.Poe): alguém a querer ser outro na radicalização da sua situação, ou ele-mesmo; a descrever-se como se o indivíduo pudesse ser uma história e, melhor, que essa história pudesse ser escrita (o que era impensável antes da segunda metade do século XIX). [A invenção dos aparelhos de reprodução nessa época dourada trouxe (ou é sinal, para outros) uma ruptura do sujeito com o mundo que é hoje consensual. Abundam neste livro não a descrição da cidade, das suas ruas e gentes, mas os sons de alguém que, hóspede (como é o nosso narrador/personagem) numa pensão da cidade, reparou que abrindo a janela podia ouvir o mundo, já não apenas fixá-lo fotograficamente, mas ouvir o som moderno que passava].
Vamos ao livro. Alguém descreve o seu quotidiano e as suas afrontas. Alguém quer viver, melhor, escrever, e a Fome emerge. Tinha tudo para se saciar mas, por uma ou outra razão, não o fez: há imperativos que até a indigência reconhece. A vergonha e o medo pertencem à natureza deste homem mas não a culpa. As contínuas falas com Deus resultam do caminho de alguém que erra mas não sente culpado desse erro (ao contrário doutros heróis). Nunca quis ajuda que não proviesse do seu ofício, da sua escrita. Podia ter uma senha de refeição, um adiantamento mas, exceptuando uma vez, nunca quis. Queria ser íntegro para viver a fome. Creio que é esta a principal ideia do livro. Já que não podia ser íntegro para ser escritor, a fome não deixava (um círculo), queria ser carne para a miséria. Por mais que avancem os dias, a fome volta sempre para se alojar na sua pessoa. Um pouco como a Náusea. Aliás, fome e náusea andam juntos neste livro, não noutro século.
O corpo foi-se iludindo em muitos: homem social, jornalista, pai de família, faminto, mendigo, ladrão, amante e, por fim, emigrante.
Quantos nomes para o Homem. Abençoada literatura.