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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

08 fevereiro, 2006

«O mundo é uma paisagem devastada pela harmonia»

O Choro é um Lugar Incerto

Rui Nunes, Relógio d’Água, 2006


Este livro é constituído por duas partes. A primeira foi escrita no olhar das fotografias de Paulo Nozolino [expostas no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, entre 7 de Maio e 10 de Julho de 2005. O catálogo com o título Far Cry, contém estes textos]; a segunda é uma espécie de roteiro do autor por lugares que se podem escrever. Antecede-as um prefácio da professora brasileira Yara Frateschi Vieira que tem dedicado especial atenção à obra deste autor.

A pergunta que se pode fazer à primeira parte é: vivem bem os textos sem as fotografias? A resposta é sim. A reprodução de três fotografias desloca-se sobre a escrita com outras indicações visuais, reforçando a inquietação que atravessa os textos, subtraindo-os a um tempo e a um lugar precisos. A ausência da imagem coloca-nos, mais a nossa circunstância, no lugar do que se dá a ver e amplia-nos; faz-nos deslizar por uma cicatriz, constantemente reaberta pela palavra luz que se acende para o medo e para a dor e, sobretudo, para os destroços causados pelo «exercício» de nos mantermos vivos. Ler este exercício é regredir a uma gramática que sabe, na sua compaixão, ampliar os destroços de uma harmonia, efeito da obrigação que o humano impõe, desde sempre, como saber técnico, à realidade e à reprodução: no princípio e no fim, são os destroços e o silêncio que perduram. Ao caos e ao silêncio o humano impõe ordem e ruído, para lhe suceder novamente caos e silêncio. Ver assim, é ampliar o que sufocado pela sistematização e pela geometria é digno dos nossos olhos, de ser pronunciado e, por fim, de ser salvo: «o homem sentado mostra a pobreza, mas não acusa: abre unicamente os olhos: abre em nós os seus olhos» (pg.41).

Alguns poemas da segunda parte (os habitantes da casa: luz, palavra, segredo) são escritos sob a influência da dor, do ardor dos olhos que reconhecem o lugar do mal. Há muitos poemas sobre Mauthausen (http://www.remember.org/camps/mauthausen/), uma pequena cidade perto de Linz, que antes da segunda guerra mundial trabalhava a pedra que pavimentava as ruas de Viena. Com a guerra, construiu-se um campo de concentração, e a pedra retirada pelos prisioneiros serviu para construir as edificações do campo, entre elas os fornos crematórios e as câmaras de gás. Os prisioneiros de Mauthausen extraíram e trabalharam a pedra que um dia serviu para o seu extermínio. Mesmo em Auschwitz tinham medo daquele campo austríaco.
É necessária esta introdução (dirigida ao leitor que desconhece a existência de Mauthausen) para entendermos a maioria dos poemas a que Rui Nunes deu o nome deste campo.

No lugar da pedra ficou uma enorme cratera coberta hoje por mato e erva e «os pássaros saem dela, na oscilação de um canto» (pg.53). Não indagam estes poemas a razão do humano para infligir noutros tal sofrimento, mas o que é preciso fazer para esquecer. E a resposta parece ser: esperar, esperar muito tempo até que haja novos olhos para ver, novos sentidos que inventem outro relevo, sem história, que repouse para sempre no seu problema estático que é qualidade de todas coisas; um tempo que já não lembre, que tenha outra memória do humano. Porque o cheiro ainda persiste no vento que apaga o nome de deus. O cheiro das mãos a roubar pedra à montanha; o cheiro dos corpos a subirem ensanguentados a ladeira feita de morte; o queixume do arvoredo que exala ainda o fumo dos ossos, veias, muco e nervos em que os corpos se transformaram antes do calor os desfazer. É preciso uma eternidade, talvez. Até ao momento em que ao dizer um nome, este não se extinga. Por ora, «a dor liberta-me de todos os nomes a que me poderia acolher e concentra-se num único e distante nome: Deus: murmuro-o, e ele retrai-se, até se extinguir.» (pg.60).
Agora quem narra é um deles sentindo «os detritos sempre a acumularem-se», restos que é preciso varrer para dentro do corpo, para dentro da morte. Não age assim para se salvar, mas para que uma pausa irrompa do cansaço e levante a ternura; para que irrompa da pobreza a palavra casa ou outra palavra na infância.

E depois há outros lugares que o não são, mas espaços de perturbações. Olha-se para a ruína em que tudo se transformou, olha-se para a pobreza que é ainda, nestes poemas, um reduto final de sobrevivência. Esperamos que surja algo, imprevisto, que recomponha a face do mundo, não para lhe dar sentido («deixemos o sentido a Deus») mas para que aumente a alegria da nossa errância. Não queremos que outros nos ensinem como é estar vivos em confronto com deus: queremos ser inteiros entre os destroços; completos no corpo que vagueia e já não vê a luz mas o que ela provoca na pele do mundo. Estar em Ceuta é estar em Viena. Temos que regressar rapidamente a casa e voltar a partir: movemo-nos pelo desejo de catalogação da dor e da ruína, por novos ruídos que trazem o longe para bem perto, o desconhecido para o nosso espaço privado. Só o ruído pode ainda fazer isto. O ruído do que fica muito além, lugar de penumbra e perda, traz-nos um espaço que construímos para sobreviver. Somos herdeiros de um mundo em fuga «e nós uma transparência que o mundo atravessa. Que pena já não se poder abrir a janela do comboio para dizer adeus, ver quem nos ama a desaparecer» (pg.78). Só os sons que vêm de longe apaziguam (pg.80) pois os que nos são próximos são de lugares e seres onde cresce o vazio, que fabrica a ruína «com uma precisão maníaca» (pg.81).
O que une o tempo é a memória que assassina o presente. É incapaz de o resgatar ao naufrágio que vem de longe, à emersão dos destroços.
E para não ter que confrontar-se, sistematicamente, com a mesma desolação, o poeta procura na viagem um nome, um nome que tudo suspenda, nem que sejam apenas palavras que regressem ao corpo em forma de poema, para que a nossa parte inumana venha finalmente ao nosso encontro[1] e não lembre, nem reconstrua.

[1] Cfr. Fernando Guerreiro, Italian Shoes, Vendaval, Lisboa, 2005, pg.63. Ver tb. citação de Bragança de Miranda no artigo (deste blog) A Citação é um Objecto.

1 comentário:

Maria Simoes disse...

Parabens pelo blog. Já é altura de colocares aqui os livros que escreveste. Beijinho

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