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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

08 abril, 2006

O LUGAR DAS COISAS OBSCURAS

Toda a arte se faz da máxima indeterminação à máxima determinação. A passagem é feita pelo espírito criativo, mas esta extrema determinação só é visível na obra. Mesmo a morte que pode ser considerada, aqui, a suprema determinação, só no nome tem sentido para o sujeito. Este fim é a passagem ou reunião que toda a obra faz, como um arco inútil. Mas não é aqui que reside a dinâmica da literatura, pois esta no seu movimento de determinação apenas muda o curso da vida de um modo indelével, como uma memória em busca da sua forma. A arte, toda a arte, tem uma profunda relação com a morte, como se o seu alvo fosse uma inteireza indeterminada, escondendo da morte algo que ao próprio sujeito sobreviva, não no sentido de alcançar a glória eterna, ou da lei da morte libertar-se, mas para que o cumprimento da arte tenha sentido, não, portanto, o cumprimento com sentido da vida. Como Kafka aponta no seu diário em 13 de Dezembro de 1914[i], as melhores páginas escreveu-as para morrer contente, porque essas suas melhores páginas não reflectem sobre a vida ou o real mas sobre a própria definição de arte, que encontra na morte a simultaneidade do saber de mestre e eterno aprendiz. O que se estabelece com a morte, e verificamos isso em muitas obras literárias deste século, é, a todos os níveis, uma relação de liberdade profunda e que está presente de um modo radical em todas as consciências modernas. Em Broch, como em Faulkner, essa liberdade necessariamente humana, estaria posta em causa se não houvesse esse arco tensional da vida, através da arte, para a morte. Porque nos dois autores, e sobretudo nas suas principais personagens, a vida em sua inteira liberdade não ficaria completa se não houvesse o enfrentar essa suprema verdade que é a morte. Abandonar a luta ou fugir a essa força que se move e nos atrai para um fim, é abandonarmo-nos ao domínio da máxima indiferenciação que é o real, abandonando-nos à falha «genética» do mundo que é irreparável. Mas como só aos humanos isto aflige, por ora, é nas obras deles que deve ser impressa a sua topografia: é esta a utilidade da literatura e, porventura, a única. É neste diálogo entre falhas que se mostram e têm naturezas diferentes que o mundo de cada um, e possivelmente o todo, dia a dia recomeça até ao momento em que a falha for tão falhadamente iluminada que já não reste dela senão um sinal, porque falhar melhor é sempre falhar sem luz.
Toda a analítica da actualidade que transporte ou apenas deseje transportar em si uma cura, não foge do percurso da imensa claridade até à terna sombra que não é mais do que esse sinal que atrás referimos. Como a história de Benjamin, queremos primeiro cegar para depois ganharmos, pela arte, milagrosamente a visão. Ou como diz Broch, através do pedido de Virgílio ao seu médico, «cura-me para que possa morrer»[ii]. Só a partir deste momento, quando as palavras cumprirem a arte poderão estas voltar-se para a sua origem que não deverá estar muito afastada do trágico ou da dupla condição humana. As línguas esqueceram-se de si para servir o humano e o seu espírito, para gerar esse confronto em vida com a máxima determinação. Estão agora prontas, no seu silêncio, a revelarem-se. Este parece ser o seu fito. Tendo escutado a dor dos homens, chegou o momento de se escutarem, não olhando para o futuro mas olhando para o passado, em tensão com a origem, onde deve estar o nascimento de todas as línguas e suas causas. Neste momento deve também haver o que suspenso desde há muito aguarda uma incarnação. Toda a arte, mesmo a das grutas, é apocalíptica, não é de hoje esta inclinação. É apocalíptica não no sentido em que, revelado, todo o mundo volta ao caos primordial mas se torna apenas uma subtil revelação.
[i] «Todas estas passagens delicadas e muito convincentes têm sempre a ver com o facto de alguém estar a morrer [...] Creio que vou ser capaz de estar com satisfação no meu leito de morte, estas cenas são secretamente um jogo», pg.286.
[ii] A Morte de Virgílio.

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