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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

24 abril, 2006

O Simples e o Obscuro – ou duas formas


A experiência poética, no contemporâneo, faz-se sempre em dois registos: o simples e o obscuro. Utilizo aqui duas formulações qualitativas que se podem encontrar em qualquer crítica de um livro de poemas. Para alguns leitores a poesia tem que ser clara, para outros a clareza não é qualidade da poesia e ela tem que ser sempre obscura. Não pertence à semântica do obscuro, aqui como em muita literatura do séc.XX, o ininteligível ou a iliteracia. Se alguém diz que sim, que um determinado poema o preenche completamente, o que quer dizer com isso? Que uma mesma experiência passou, na unidade sincrética de significação, para o poema. Claro que obriga o leitor a ter vivido ou experimentado aquilo que ali está escrito. Mas se a poesia tem algo de novo que tem que ser dito, pode ela ser cristalina, simples, ser essa unidade de significação de que falava Herberto Hélder para descrever a noção de estilo (no texto «Estilo», no seu livro Os Passos em Volta)? Creio que não. O que é novo não pode ser simples, ou a transferência da violência e confusão diária, para uma unidade mental de significação. O novo em poesia, como em qualquer outro ofício humano, é sempre um lugar de deambulação sobre a falha: All of old. Nothing else ever. Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better (Samuel Beckett, Wostward ho- Pioravante marche). E falhar cada vez melhor, a um passo do abismo que é a dor da experiência, é falhar o mais próximo possível do objecto e aqui poucos se aventuram, leitores e autores. Estar próximo do erro, ou aproximar-se tanto do objecto (que pode ser uma experiência), é estar a caminho de uma total imersão no objecto ou na experiência não sendo permitido, a partir daí, voltar atrás: o que escreve e o que lê nesse lugar tornam-se no mesmo mundo. A poesia obscura é isso: estar próximo da deflagração mas consciente que a melhor falha é aquela que não pode engolir mais espaço para o objecto, nem recuar. A primeira leva a uma queda na prosódia (e, nalguns casos, à loucura, através da perda da linguagem em que antes desta acção se constituía o mundo) e a segunda a um equívoco literário que abunda nos nossos dias. Nesta aproximação a uma melhor descrição e visão do que queremos dizer, a linguagem tem que ser sempre nova, pois nunca tentada, deixando em pânico o leitor perante a evidência da novidade e da inovação. Os avanços do discurso poético não se podem fazer apenas (como noutros géneros literários) por unidades mentais de significação, estes produzem, correctamente, um outro ponto de vista sobre a imagem da experiência que está obrigatoriamente contida no literário e tem que ser partilhada, comum. O avanço apenas pode ser introduzido na escrita através da falha, que é um tecido sempre novo a rasgar-se, a caminho de uma ferida, por vezes orgânica, que quer dizer-se. Ora aqui reside um problema muito central na poesia do século que findou e se vai arrastar por longos anos: na verdade, daquilo que não se pode falar deveríamos guardar silêncio. Só que o silêncio não é humano, é qualquer coisa anterior ao humano que ele não entende: todo o universo tem que ser sonoro. Não podendo guardar silêncio, que é próprio do que é imóvel (Deus, por exemplo) e não da errância edipiana do homem, é necessário falar, ruidosamente ou não, da aproximação sempre oblíqua ao mundo e à experiência. Só a verdadeira literatura pode fazer esta aproximação. Pois só nela estão contidas, simultaneamente, as qualidades do humano em falha, a queda no centro devorador e a deambulação, em ausência, pelo mundo. Como a literatura e, sobretudo, a poesia entende este processo, só ela sabe quando parar: quando dar conta da falha, o falhar melhor de Beckett, está na aproximação inexorável ao incêndio, que é o objecto com a sua força de atracção, que tudo queima e nele nada de novo se reproduz. Podemos, claro, ficar longe dessa aproximação à melhor falha, a momentos antes da dor, colocando-nos nessa visão de que é possível falar sobre nós e a vida, estando afastados desse fogo. Mas aqui a inovação é rara. O espaço poético é na maioria das vezes estéril, permitindo apenas a nomeação da experiência ou a retenção, numa imagem, dessa experiência que quer ser compartilhada, transformando-se numa co-experiência. Lembro-me para esta situação do sempre novo Platão: é como pegar num espelho e andar com ele por todo o lado ( República, 596d). E o que produzimos com esse espelho? A aparência, de que a experiência pode ser transmitida e que pode ser partilhada. Só que aqui tudo é passageiro, tudo está de passagem, o que não acontece na inovação organizada no tecido da linguagem que rompe com todas as formas linguísticas (e sociais) e que é capaz «de abrir a prisão da história» (Cláudio Magris, Danúbio). Para aquele que não se quer aproximar, que quer ser simples nessa unidade de significação, resta-lhe alimentar-se da experiência da poesia, o que é um pecado contra ela. Uma experiência, um exemplo: oscilar o dedo indicador, para cima e para baixo, rapidamente, aproximando-se lentamente da esquina da mesa. O momento ideal para o poema é aquele, por analogia, que se situa um pouco antes do dedo embater na madeira e doer. É também a melhor falha. Muito antes nunca saberemos o que é a aproximação ao choque e à dor, nunca saberemos o que é falhar melhor, depois é a dor que torna toda a experiência num longo clarão, que cega, que torna ininteligível o mundo e o seu comunicar-se. Sabemos que falhamos sempre, que é necessário falhar, mas então falhemos bem, saibamos não nos precipitarmos na massa negra, nem, por outro lado, deambular pela experiência como se esta fosse uma página de literatura em branco.

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