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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

04 abril, 2006

DO PROJECTO HUMANO EM TRADUÇÃO


(Ao ler O Absoluto que Pertence à Terra, de Maria Filomena Molder [Vendaval,2005], lembrei-me deste texto. Espero mais tarde falar realmente do livro)

O escritor actual aproxima-se mais da ideia de tradutor do que de autor[i]. Perante a ideia de tudo estar dito ou não ser capaz de ser dito, o escritor limita-se a reunir na língua outra língua, porventura com uma gramática e uma semântica própria, sem nunca se saciar. Por este facto fica para sempre afastado do domínio da verdadeira criação, com marca de autor, que é o original. Só apenas este sacia abrindo as portas da glória. A noção de citação no dossier contemporâneo, como podemos ler por exemplo em Benjamin, está presa àquela ideia de o autor já não o poder ser senão em tradução. Assim, de cada vez que se cita, o que escolhemos é uma espécie de mónada que não só resume a obra mas insere, nas palavras citadas ou transcritas, a sua totalidade. Parece ser mais fácil, sobretudo pela sensibilidade apocalíptica, pelo receio do fecho do tempo, da quebra da sua durabilidade, escolher um pequeno espaço da língua que traduza e ilumine o restante. Se as grandes obras do romantismo e do realismo acabaram para dar lugar neste fim de século a pequenos livros, cada vez mais finos, é normal que a citação ocupe o limite deste trajecto. Mas não estamos livres, depois do fim da aura benjaminiana, da nossa identidade, ou o que em nós assim lhe podemos chamar, que substitui em parte a glória, ser uma acumulação de evidências. Evidências, sobretudo, que nada dizem aos outros – que terão certamente, conhecendo a obra, outra citação a opor como se de uma forma de vida se tratasse, e assim sendo, nunca poderão servir de guia ou marcas da genialidade deixadas na paisagem cultural para serem seguidas pelos que vierem (como entendia Kant, na Crítica da Faculdade do Juízo, a ideia de génio e genialidade). A singularidade da citação, que é a singularidade de uma escolha em-si, permanece encerrada para sempre (excluindo o citador), pelo que não tem interesse afirmar das diferenças da voz interior que é diferente em quem cria e em quem traduz: este é um reino sem fixação. Não podemos por isso distinguir, no momento actual, aquilo que no haver, devir, distingue o criador do tradutor. Se a glória era coisa que os distinguia também esta hoje pouco importa pois sucumbiu ao efémero.
Entre escutar a voz e ser a própria voz a diferença é curta em exercício, embora a saibamos abismo. A língua não é real, e assim sendo, a sua expressão cabe em todos os suportes legíveis como um acordo semântico já previamente estabelecido em qualquer língua ou numa língua comum a haver. Só reconhecemos um poema original no mesmo espaço em que identificamos o mesmo poema traduzido. Quem diz um poema diz qualquer texto. O antes não tem decifração, apenas ganha o nosso interesse a partir dessa «habitação passageira»[ii] que já tem luz suficiente não para distinguir completamente (esse é uma função e um acto individual com uma gramática própria) mas para iluminar a coisa. Claro que há errâncias (que são traduções e é uma qualidade da língua) que nenhuma habitação contempla mas, possivelmente, também o tradutor não estava interessado em abrigar-se nessa habitação por duas razões: ser genial ou insuficiente domínio das línguas[iii]. Esta habitação é única e singular, e tem apenas uma porta como o destino, deixando por ela passar o que cumpre as seguintes regras: primeira, o que é transitório, o que não vai permanecer; segunda, o que está de passagem, em percurso afeccional para o entendimento da comunidade dos vivos; terceiro, o que não se mostra frágil, doente, isso quebraria as duas anteriores regras[iv]; e por último, nessa habitação tudo tem de conviver. É a partir daqui, e sobretudo a partir da quarta regra a cumprir, no direito de admissão, que a indiferença cresce para nós, con-fundindo original com tradução, autor com tradutor, língua com língua. Repare-se, no entanto, que a indiferença completa não pode existir no interior da habitação (não podemos pensar isso como não podemos pensar a diferença radical, o inumano por exemplo) e quando isto parece suceder há uma ordem de expulsão, o que ocorre quando o domínio de uma língua, a sua solidez, eclipsa a língua materna, a língua do tradutor.

[i] Paul Valéry é um entre muitos que defendem a ideia de o acto da escrita ser sempre um acto de tradução. Ideia também apresentada no prefácio à tradução francesa da obra poética de Constantin Kavafis, POR Marguerite Yourcenar. Valery afirma: «Écrire quoi ce soit, aussitôt que l’acte d’écrire exige de la refléxion, et n’est pas l’inscription machinale et sans arrêts d’une parole intérieure toute spontanée, est un travail de traduction exactement comparable à celui qui opère la transmutacion d’une texte d’une langue dans une autre» ou ainda «Nos idées nous sont propres et pourtant étrangères, comme nous sont propres et étrangères les douleurs Qui nous viennent traverser», Ouevres I, Biblio.de la Pleiade, NRF, Paris, 1955, pg.211 e 321. Para o mesmo assunto Cfr. «A propósito de uma tradução» em Semear na Neve. Maria Filomena Molder. Relógio d’Água, Lisboa, 1999, pgs. 24-39, onde, citando Hamann, se diz «que toda a fala é um acto de tradução».
[ii] «Semear na Neve»,pg.32.
[iii] Para a primeira razão temos o exemplo, e outros abundam, de Hölderlin na sua tentativa de traduzir Sófocles, que pretendia derradeira e nunca o pode ser. Para a segunda temos outros milhares, conjunto muito mais vasto que o anterior que abunda na tradução e mesmo nos originais.
[iv] Penso esta habitação como uma «pensão» clandestina.

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