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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

25 outubro, 2014

O SENTIMENTO DA NATUREZA E DE PERTENÇA

«é importante que um homem se sinta não apenas cidadão de uma nação em particular, mas também cidadão de um lugar específico do seu país, que tenha as suas lealdades locais».
(T.S.Eliot , Notas para uma Definição de Cultura)

A obra de António Salvado entrou-me pela porta adentro há muitos anos. O único jornal que havia lá em casa, semanalmente, era o Jornal do Fundão. Comecei a ver o seu nome e a ler alguns textos. Mais tarde encontramo-nos. Tenho com ele, para além do meu reconhecimento de um grande poeta, essa infância numa aldeia da Beira Interior. 
A partir da década de 70, já com outra idade fui lendo com fervor a poesia portuguesa do século XX. E o António estava lá. Já por vezes me alonguei sobre a sua obra, em recensões ou breves análises. A maioria está ainda legível na internet. É uma vantagem do digital. Estando ele em Castelo Branco e eu em Lisboa, falamos pouco mas trocamos livros. E por isso posso dizer que devo ter na minha sala a quase totalidade da obra de António Salvado.
 
Há uma expressão que pode ser o princípio desta pequena conversa: a construção literária de uma pátria sensível. E o que é esta pátria sensível? É um híbrido: possui um território, uma paisagem e um encontro. Se o território e a paisagem são naturais numa pátria (e esta paisagem tem sempre diferentes camadas) o encontro é um lugar, neste caso literário, a partir do qual se ergue uma produção afectiva. Este lugar torna-se pela poesia (ou outro género) um espaço e tempo de deambulação pelo que fomos e o devir desse mesmo lugar. A beira interior tem na obra de António Salvado um destaque particular, não que o poeta se sinta na obrigação de ver, sentir e escrever sobre o mundo que habita, mas porque os elementos que fundam a sua poesia parecem nascer desse mundo. Há então da nossa parte um reenvio constante a essa pátria feita de plantas, águas, estações e gentes, e também o que vai do quotidiano à sublimação do dia. Por mim, ergue-se nas vezes que o leio uma afeção que é quase sempre uma infância, dando assim razão à ideia que a infância é o lugar da poesia: infância da língua e do nascimento de um sentido sempre renovado do mundo.
A obra de António Salvado, sobretudo a que vem produzindo nos últimos anos, ocupa-se das noções de existência e natureza que têm servido, desde o século XVIII, para o olhar crítico e analítico da condição humana. Numa era em que a produção de arte e a expressão do sensível se faz, muitas vezes, através de mediadores, separando o humano, a natureza e a arte, a poesia deste poeta insiste em manter uma relação próxima, ideal, com o que funda a vida. Sei que é um velho dilema, sobretudo desde aquele século, e a partir do texto de F. Schiller, «Sobre a Poesia Ingénua e Sentimental». O problema era natureza e sobretudo uma espécie de esvaziamento na noção de natureza com o avanço da técnica e dos seus mediadores. Na maioria dos poetas do século XX, e sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, a cisão entre o sujeito e uma unidade originária há muito estava feita. No caso de António Salvado isso é notório mas, e isso sucedeu nalguma modernidade, há um desejo em parte da obra em encontrar pela linguagem, uma palavra que levante o mundo, isto é, que dê unidade ao que se perdeu. O nosso poeta voltou-se então para a natureza e o indivíduo, e pelo verso tenta essa unidade, já não como princípio sem o qual não é possível dizer o mundo mas, sobretudo, como uma harmonia, uma sintonia, a partir da qual o poeta se realiza e o indivíduo ganha forma. E aqui são importantes as formas que percorrem a obra do poeta. Sem nunca deixar as práticas de ritmos, métricas e composições clássicas, Antonio Salvado desde muito cedo empreendeu formas que tornavam os seus poemas como próximos de um dizer antigo e, simultaneamente,   reconfigurou-as para um presente em que a leitura é marcada por uma força visual que dá relevo a espaços, sentidos e outros ritmos.
Mas que natureza é essa para que nos remete constantemente o poeta? É uma dupla natureza. Se por um lado encontramos na poesia que invocamos uma permanência no lugar da tradição, por outro lado a sua obra acompanha a poesia moderna e contemporânea ao instalar-se na tangência desse lugar. Assim, a natureza poética em Salvado é um ponto,  de tangência com a tradição mas também ruptura com a mesma. Da poesia vê-se a infância mas também o que nos afasta dela: a nossa história e o nosso tempo. É, por isso, uma natureza sensível gerada mais pelo espectro do que pelas materialidades. E isso é também parte importante do que funda o afecto (uma «afinidade exterior», in Poesia, Difícil Passagem). 
Volto aqui ao início e retomo o que se pode considerar a marca mais expressiva, pois se funda no sentimento, natureza e afecção, da poesia de António Salvado: o lirismo. A poesia lírica está hoje muito longe do que se entendia antes do século XVIII. As rupturas da modernidade com a tradição e a inclusão do tempo e existência individuais trouxeram novas paisagens à poesia. Basta lermos o século anterior. No meio da linguagem uma interrogação permanente do sujeito. E nas margens dessa linguagem ainda e sempre a tentativa de erguer uma língua que pudesse aprisionar o tempo e o mundo. Já não todo o tempo, já não todo o mundo, mas o nosso tempo quotidiano e o mundo que nos calhou em sorte. A poesia de António Salvado junta a estes elementos um tom sentimental, podemos chamar-lhe aqui de lírico (para ser fácil uni-lo à tradição) em que todos os mais pequenos fragmentos do quotidiano (uma dor, a chuva, a beleza de uma manhã, a tristeza de uma partida) refletem-se na sua linguagem poética, não como uma posição diarística, que poderia haver, mas como o sensível que quer ser parte integrante dessa textura e do tecido que, sempre como uma música, a sua poesia vai construindo. E assim se chega à criação de um território sensível e, nele, uma pátria.
Não é em vão que o meu
Lugar me acompanha: ele
Que me fez da terra,
Que me deixou respirar,
Que me insuflou o fogo 
Da criação, que fez dele
Brotar a água que bebo.
(Ecos do Trajecto)
Com esta afeção e com a marca lírica do poeta chego ao fim da minha breve peregrinação.

Nota Breve: este texto deveria ser parte da minha intervenção em Castelo Branco, num painel incluído no colóquio em homenagem a António Salvado. Mas não cheguei lá. O carro não quis andar.

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