Autor: Zlatka Timenova
Título: Chama, a Palavra
Editora/Ano: Edlp/2013
Este livro de Zlatka Timenova*, em pequeno formato, parece ter sido feito para a mobilidade urbana. Com prefácio de Nuno Nabais e revisão de Rui Zink, a poetisa búlgara verte para a língua portuguesa textos que, penso, escreveu originalmente em francês.
Temos então uma edição bilingue de pequenos poemas que se lêem como traços de um quotidiano submerso pela breve luz que se encanta por objectos, sentidos ou memórias. Com eles caminhamos ao encontro de uma opacidade que se revela em poesia. As palavras assumem que o que é breve aos sentidos merece permanecer -preto no branco- sem, contudo, se esquecer que também o verso se insere na linha do tempo: «No eco / do silêncio / oiço o sussurro / do tempo / eu sou o tempo» (pg.79).
Os poemas que raramente ultrapassam os cinco versos, tornam possível unir, no instante do seu aparecimento, o corpo sensível e a fantasia. Instante poético recolhido (em duplo significado) na ferocidade do tempo quotidiano. Talvez por isso se abra o título deste livro a uma ambiguidade semântica consentida: a que faz nascer a palavra incêndio - ardor e inspiração- ou convocar a palavra: CHAMA, A PALAVRA. Palavra para perpetuar o instante: «Areia fina / entre os dedos / corre / o silêncio/ dos nossos dias» (pg.25).
Um livro a ler.
*A autora nasceu em Sofia, na Bulgária, e está desde 1994 em Portugal, escrevendo, traduzindo e ensinando.
Etiquetas
- literatura (3)
- som (3)
Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)
15 dezembro, 2013
20 outubro, 2012
Outra despedida
Acompanhei a produção poética de Manuel António Pina a partir de «Aquele que Quer Morrer» (Na Regra do Jogo, 1978) e só depois cheguei a «Ainda não é o fim…» (A Erva Daninha, 2ª edição, 1982). Soube-se agora do seu desaparecimento prematuro. E lembro o seu poema «algumas coisas» onde fala do peso da memória que se «instala em todas as coisas de dentro para fora». Poucos poetas nas últimas décadas trabalharam tão afincadamente a memória, literária e individual, como Manuel António Pina. Havia na sua poesia o desejo de reunir o que na sombra ou no chão é fundamento do que é explícito, já que aquele que está vivo (que é, afinal, aquele que quer morrer) «dança sobre os destroços de tudo». É grande e profundo este levantar em verso «pequenas frases» que dão viço à vida. Sem elas o deserto crescia para fora, e ai daquele que traz em si desertos, lembrava Nietzsche. Mas aquele que quer morrer, lembra-nos, é aquele que quer conservar a vida. Porém,
Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se demais nestes tempos (inclusive cala-se).
Lisboa a ver o Porto, 19 de Outubro
Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se demais nestes tempos (inclusive cala-se).
Lisboa a ver o Porto, 19 de Outubro
16 outubro, 2012
01 junho, 2012
Em memória da minha filha Francisca
Tal como há dez anos também agora as cerejas se mostram vermelhas nas árvores. Vêem-se ao longe, dos caminhos que nesse dia não chegamos a percorrer. Ficamos muito antes quando ela já levava a brincadeira nelas: correr entre as cerejeiras, chegar aos ramos que dão para os cinco anos; dizer «papá posso comer assim?». E eu a dizer que é preciso lavar. Ela conhecia bem o sítio da água.
Inquieta como sempre queria chegar antes de termos começado a viagem. Inquieta de luz. Que via a sua inocência que nós não vemos? «Posso andar no tractor do tio?» perguntava a Maria, e ela que não. Mas foi só da primeira vez. Depois quis subir. Sentiu o que é a brisa que atravessa a Gardunha e o cheiro forte das árvores. Nesse ano não. Ficou-se distraída num lugar da estrada, naquela por onde poucos já passam. E todos os anos nesta época é assim, e todos os dias é assim: nasce um pomar de cerejeiras só para ela, com água fresca e tudo. E nasce em mim uma árvore às avessas que é só dor.
Mas Francisca, já não existe a quinta, por lá passa agora um túnel húmido e sombrio, cortaram todas as cerejeiras. E também a água foi levada para outros lados. E a vida.
Inquieta como sempre queria chegar antes de termos começado a viagem. Inquieta de luz. Que via a sua inocência que nós não vemos? «Posso andar no tractor do tio?» perguntava a Maria, e ela que não. Mas foi só da primeira vez. Depois quis subir. Sentiu o que é a brisa que atravessa a Gardunha e o cheiro forte das árvores. Nesse ano não. Ficou-se distraída num lugar da estrada, naquela por onde poucos já passam. E todos os anos nesta época é assim, e todos os dias é assim: nasce um pomar de cerejeiras só para ela, com água fresca e tudo. E nasce em mim uma árvore às avessas que é só dor.
Mas Francisca, já não existe a quinta, por lá passa agora um túnel húmido e sombrio, cortaram todas as cerejeiras. E também a água foi levada para outros lados. E a vida.
13 maio, 2012
UMA POSSÍVEL HABITAÇÃO
O livro Barro (Relógio d'Água, 2012) é na obra de Rui Nunes um elemento singular. A palavra «barro» que escolheu para título reflecte essa singularidade: por um lado é matéria-prima, arquétipo narrativo que «enforma» alguns dos seus livros; por outro é matéria autobiográfica, remetendo para o avô oleiro. O livro compõe-se assim em duas vertentes: a primeira dá-nos conta dos principais temas que constituem a obra já vasta deste autor (o primeiro livro, «As Margens», é de 1968); a segunda acrescenta-lhe as suas memórias, algumas delas inscritas noutros livros do autor. Este trabalho é feito num cerzimento metódico, unindo fios dispersos, unindo tempos e palavras que lhe são elementares. Assim se faz a literatura.
Um dos temas recorrentes na obra de Rui Nunes é a noção de pátria, agora identificadas: duas da infância, três do homem adulto. Pátrias sensíveis é do que falamos. A primeira é terra e casa, na Beira Baixa, que vem a nós sob uma luz de verão, intensa, que coagula no limiar e torna escura a habitação. Por isso o campo e a deambulação. Enchem as páginas desta pátria, bichos, pó de barro, chão e brincadeiras. E nelas os sentidos projectam-se até aos mais pequenos movimentos e segredos.
Depois da cegueira da luz, ao rés do chão, a outra pátria tem uma brisa marítima, atlântica, lá para os lados de Setúbal. Aqui tudo é diferente: é o mar que explode de vida e enche de luz a habitação. Temos depois mais três pátrias: a de Wachau no Outono, onde se vê, a partir do Danúbio, os restos de uma civilização e «um rio perdido entre a nascente e a foz». Mais a norte Kirkenes, terra vertical sobre o mar, um arrepio profundo. E, por último, a que defende uma outra noção de pátria para os homens: uma pátria sem território apenas corpo, nómada, com o nome próprio de «Viagem».
Este livro está organizado como se fosse um livro de cânticos, aqui e ali intercalados por um refrão. Para decorar, conforme os escritos mais antigos, os primeiros. E como canção, a escrita imprime uma determinada velocidade, ajudada pela versificação. A matéria é, como vimos, a vida; pontos de luz que se unem vindos do passado e se aconchegam no presente que tem sempre uma palavra a dizer ou a acrescentar um hálito de tristeza. Há nesta matéria, substância suficiente para uma definição autoral de escrita e literatura.
O «Faça-se» é aqui não a mediação «ad-hoc» mas a margem da língua que ainda toca no mundo: uma margem antiga, primégina, quando a linguagem quis ser a ponte entre o que é humano e a perdida physis. Se a linguagem primeiro e depois a escrita afastaram o homem da sua natureza, é possível ainda encontrar nesta língua de Rui Nunes um uso em criação e não apenas em mediação. É isso que deve fazer a literatura: encontrar essa margem de contacto, na linguagem, entre coisa humana e natural: «todas as palavras cortam, à nascença. Por isso, / obrigá-las continuamente a renascer, / embora seja também contra nós que renascem.» É necessário, por isso, arruinar a sintaxe, antes que palavras «inventadas» se interponham e tornem insignificante a língua e a vida. Talvez «o fim de qualquer escrita seja a sua destruição». E por esta destruição se destroem também palavras inventadas sobre a ruína, como «deus».
Nunca se sabe o lugar de contacto, nem nunca podemos regressar pelo mesmo caminho. Não há sinais para o retorno. Nesse lugar pode erguer-se sempre uma habitação, mas precária, radicalmente humana, mas sempre pobre: «e dessa unidade tão débil, da veemência dessa pobreza, se fez, se faz, um texto.
Sem pátria. Sem poder.
Quase sem nome.»
Sinto-me mais vertical com livros assim.
05 maio, 2012
Orquídea
A única planta que tenho em casa é uma orquídea. E todos os anos em meados de Abril o verde mancha-se de lilás. Este ano nasceram-lhe cinco bonitas flores. Todos os anos parece haver mais uma. Depois é vê-las todos os dias quando chego a casa. Mas em cada três dias cai uma flor. E hoje, dia 5 de Maio, caiu a última que não guardei. E eu fiquei a olhar aquela haste que queria encher o mundo, a ficar cinzenta e a pensar murchar. E a pergunta que faço é: o que seremos - eu e planta - daqui a um ano, quando a planta se lembrar de ser flor outra vez?
18 fevereiro, 2012
Sentir

Autor: António Salvado
Obras: REPOR A LUZ e AURAS DO EGEU e de todos os mares
Editora: Fólio Exemplar
Ano/Cidade: 2011/Lisboa
Há poetas que vêm connosco desde sempre. Perdidos na infância, ambos. Lembramos nomes. Às vezes ainda não como criadores de poemas e obras mas apenas um nome. Depois chegamos àquela idade que se deseja ler sem sabermos a causa. É aqui que surge António Salvado. Como outros, mas no meu tempo apenas, limitou uma pátria sensível e sobre ela escreve. Se este texto tivesse outro alcance, podia falar de uma cultura sensível, aquela que permanece inviolável nas comunidades beirãs: um olhar muito próximo da natureza que ele soube captar como poucos; um ouvido apurado para o fazer dos insectos se é verão; o itinerário das águas e a metamorfose das flores. E como todos os que chegam à sua idade (Castelo Branco, 20 de Fevereiro de 1936), sente-se agora nos seus poemas um outro alcance, uma espécie de ética poética que quer transmitir aos seus leitores. E por baixo, mesmo no lugar em que o seu sangue tinge as ribeiras, o assombro constante de quem pela primeira vez viu crescer e definhar uma flor.
Os poetas lembram-nos mais que outros o que é estarmos vivos, mesmo que cercados pelo inverso.
«Ó Cesário, tu que amavas a cidade e detestavas o campo, deixa que alguns corações repousem no zumbido sazonal da paisagem.»
Obras: REPOR A LUZ e AURAS DO EGEU e de todos os mares
Editora: Fólio Exemplar
Ano/Cidade: 2011/Lisboa
Há poetas que vêm connosco desde sempre. Perdidos na infância, ambos. Lembramos nomes. Às vezes ainda não como criadores de poemas e obras mas apenas um nome. Depois chegamos àquela idade que se deseja ler sem sabermos a causa. É aqui que surge António Salvado. Como outros, mas no meu tempo apenas, limitou uma pátria sensível e sobre ela escreve. Se este texto tivesse outro alcance, podia falar de uma cultura sensível, aquela que permanece inviolável nas comunidades beirãs: um olhar muito próximo da natureza que ele soube captar como poucos; um ouvido apurado para o fazer dos insectos se é verão; o itinerário das águas e a metamorfose das flores. E como todos os que chegam à sua idade (Castelo Branco, 20 de Fevereiro de 1936), sente-se agora nos seus poemas um outro alcance, uma espécie de ética poética que quer transmitir aos seus leitores. E por baixo, mesmo no lugar em que o seu sangue tinge as ribeiras, o assombro constante de quem pela primeira vez viu crescer e definhar uma flor.
Os poetas lembram-nos mais que outros o que é estarmos vivos, mesmo que cercados pelo inverso.
«Ó Cesário, tu que amavas a cidade e detestavas o campo, deixa que alguns corações repousem no zumbido sazonal da paisagem.»
Aquilo que direi…
[…]
E só nomes gerados pel’ausência
Aqueles que ouvirás:
Com sílabas de amor fora do tempo
E conformando um comovido espaço.
(do livro Repor a Luz)
[…]
E só nomes gerados pel’ausência
Aqueles que ouvirás:
Com sílabas de amor fora do tempo
E conformando um comovido espaço.
(do livro Repor a Luz)
Agora que faz anos, daqui lhe mando uma abraço.
11 janeiro, 2012
A CRIANÇA
Escrever palavras, com um dedo de criança
para ficarem soltas no ar, «como alegria e mundo».
Escrever outras menos precisas, «como amor»,
só por descuido,
pois muitas mirram e morrem
sugadas pelo ar da manhã.
Mas o homem não sabe escrever de outro modo.
Nunca teve outro utensílio
apenas o dedo indicador com que desenha
as letras bonitas e redondas
que viu nos livros da casa.
«Desenhar casa», lembrou-se
e surgiu uma cidade
mistura de outras cidades do Sul.
Olhou para onde nunca esteve
e esperou que o ar a engolisse por inteiro.
Escrever palavras, com um dedo de criança
para ficarem soltas no ar, «como alegria e mundo».
Escrever outras menos precisas, «como amor»,
só por descuido,
pois muitas mirram e morrem
sugadas pelo ar da manhã.
Mas o homem não sabe escrever de outro modo.
Nunca teve outro utensílio
apenas o dedo indicador com que desenha
as letras bonitas e redondas
que viu nos livros da casa.
«Desenhar casa», lembrou-se
e surgiu uma cidade
mistura de outras cidades do Sul.
Olhou para onde nunca esteve
e esperou que o ar a engolisse por inteiro.
21 novembro, 2011
25 agosto, 2011
Sobre o Fantasma e a Literatura

Obra: Teoria do Fantasma
Autor: Fernando Guerreiro
Editora/Ano: Mariposa Azual/2011
O fantasma colige, sobretudo a partir do século XIX, e ainda mais com o aparecimento das máquinas de reprodução (som e imagem), significados que nunca se perderam na literatura, seja ela erudita ou popular, laica ou religiosa.
Assume-se, no entanto, na primeira parte deste livro, «Literatura Fantástica», (esta obra comporta mais uma parte em poesia a que o autor chamou «Teoria do Fantasma» e uma separata «Teatro Dubrowka»), que não é apenas uma aparição do que já perdeu o corpo que se fala (e daí a palvra teoria) mas de Poesia, enquanto operação humana de produção (em diferentes camadas) de um outro que contamina a literatura tornando-a espectral e, por isso, fantástica.
O ensaio (e o poema) sugere dois percursos para essa aparição: por um lado o autor sabe-se portador do fantasma que preenche o texto; por outro lado o leitor constitui-se, na leitura e através do semelhante e analógico, com a estranheza.
Isto implica quase sempre, dependendo dos modos de produção de sentir, que o «real» renasce sobre o espectro, o que «implica o risco do sujeito» (leitor e autor). Risco de vida mesmo. Quantos soçobraram à visão de um «real» a partir de um meio? É esta última palavra que o livro segue. Não apenas o meio mas também a sua mensagem, essa que torna sensível, «visível», o fantasma.
15 julho, 2011
11 julho, 2011
JORGE LIMA BARRETO

Conheci pessoalmente o Jorge Lima Barreto há pouco tempo, há menos de um ano, por obrigação académica: fiz parte do júri da sua tese de doutoramento que apresentou à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (da Universidade Nova de Lisboa). Já tínhamos trocado alguns mails, e continuamos a fazê-lo depois da dissertação. Queria convencê-lo a dar algumas aulas no curso de Ciência e Tecnologias do Som, na Universidade Lusófona. Quando um dia destes foi ter comigo à universidade achei-o muito em baixo. Perguntei-lhe das causas. Deu-me as suas. Falamos do estado da arte e do país. Ficamos de falar. Lembro tudo isto agora que o Jorge se foi embora. Penso que deve ter ido dar uma volta, que foi até Vinhais e por lá deve ficar não se importando mais com a cidade, com a música e a escrita em torno da improvisação, da tecnologia e dos instrumentos. Foi sempre novo. Lembro-me na década de oitenta e em alguns concertos. Vou-me daqui a um dos discos dele. E que posso eu lembrar? O Verão com o Jorge dentro.
08 julho, 2011
Cy Twombly (1928-2011)

Olhamos. Olhamos muitas vezes. Suspendemos a visão e pegamos no ouvido. Queremos ouvir o traço do pincel; os riscos; as letras e, sobretudo, os nomes. Ficamos neles. Querem dizer tempo. São profundos e levam-nos a Roma e a Atenas. São nomes de gente. Todos mortos. Mesmo um ponto de tinta ou uma letra remetem para um início, uma origem, que logo se faz maior idade e parece morrer. Mas antes há em nós a evocação de um tempo profundo, da sua memória e das nossas lembranças.
Pintar ou desenhar como se estivesse a ouvir as primeiras letras a serem ditas, articuladas. Escrever para querer dizer os segredos que se escondem por detrás de todas as palavras, mostrar o significado de cada vez que foram ditas. E o que ouvimos? A algazarra dos tempos. As épocas sobrepondo-se e a audição a deixar-se cair para dentro, para essa matriz sonora que se compõe desde o início. Na infância dos gestos e da expressão: é aqui que tudo começa.
Morreu em Roma que tinha adoptado como sua.
Pintar ou desenhar como se estivesse a ouvir as primeiras letras a serem ditas, articuladas. Escrever para querer dizer os segredos que se escondem por detrás de todas as palavras, mostrar o significado de cada vez que foram ditas. E o que ouvimos? A algazarra dos tempos. As épocas sobrepondo-se e a audição a deixar-se cair para dentro, para essa matriz sonora que se compõe desde o início. Na infância dos gestos e da expressão: é aqui que tudo começa.
Morreu em Roma que tinha adoptado como sua.
06 junho, 2011
10 abril, 2011
Amigos: Deixo aqui um convite para o lançamento do meu livro (O Mundo é uma Paisagem Devastada pela Harmonia – [ensaio sobre o ruído e por natureza o som]. Lisboa: Vega, 2011), com apresentação do prof. José Gomes Pinto, a ter lugar no dia 15 de Abril, pelas 17 horas, no Edifício Q, sala Q.2.3 (auditório), da Universidade Lusófona, ao Campo Grande. Espero a vossa presença.
05 abril, 2011
O Desastre Épico

A Mão do Oleiro
Rui Nunes
Relógio d’Água, 2011
Este é o novo livro de Rui Nunes. E nele descobrimos alguns dos núcleos narrativos que já tínhamos encontrado em «Os Olhos de Himmler» (2009). Este livro não escapa a um corte profundo com o que sempre consideramos romance, conto ou poesia: há uma hibridez de géneros que atinge a linguagem do autor. Para além desta hibridez, a escrita organizada como se de um caderno de apontamentos se tratasse, rompe com os códigos da linearidade e obriga o seu leitor a constituir diferentes camadas de sentido, que partem do modelo tradicional da ficção à apresentação de memórias, de superfícies em deambulação a processos poéticos que emergem da impressão do real no narrador. Organizado sem uma distinção geral de lugares e tempos, como se o mesmo corpo (mesmo narrativo) pudesse convocar o que foi e o que é, a leitura faz-se inteira no percurso de cada linha. E em cada linha nasce um caudal significativo donde se pode ver a literatura em construção, mas sem andaimes nem rede. Em cerca de 70 páginas, Rui Nunes convoca para o seu exercício um pretérito e um presente, as figuras de um mal geral, uma paisagem luminosa e sonora mas contaminada pelas diferentes faces do humano e, por fim, as palavras possíveis do que ainda pode ser descrito ou nomeado sempre em convulsão, manchado que está por palavras herdeiras do que desde a origem está contaminado pelo desastre épico reduzido aqui ao essencial e contemporâneo. Desde as primeiras obras que Rui Nunes seguiu o curso literário mais inovador do século XX, o que recusa a prosa ou o romance como meio de informação e entretenimento e dá abrigo a uma experiência na linguagem a partir do vivido e do horizonte da morte.
Há também uma criança que anda de um tempo a outro, de um passado para um presente. Sem nome. O passado é mais largo que o presente. Este estreita-se cada vez mais, em cada palavra, na própria recusa de constituir uma descrição que possibilite ao leitor algum ponto de apoio ou sustentação. Temos alguns mas funcionam como metástases do mal que povoa o tempo, qualquer que seja. Essa criança sem nome cresce em muitos lugares, alguns bem conhecidos, outros nem tanto. E esta criança torna-se homem nesses lugares e, nesta acção, contamina-os com o seu passado. Não os pode ver de outro modo. E o que não se deixa manchar é o que escapa ao humano: o som, as sombras, a luz, o silêncio e o povoamento destes interstícios no espaço e no tempo, isto é, a natureza eterna mesmo que apocalíptica. Bem, a criança cresce em alguns lugares identificados, de Dresden ao Médio Oriente, de um interior rural às grandes cidades, e observa e diz o que passa despercebido à maioria dos mortais. E com esta observação distende também a rugosidade de um passado sobre os erros do presente, alheio ao rancor mas não há angústia e à luz baça do dia. É um livro sobre a existência, ou melhor, como nos tornamos terra com outra terra, e bichos com outros bichos, mesmo aqueles que não se observam a olho nu.
O rapaz veio de um lugar de silvas, de uma escola escura onde as palavras se comiam umas às outras, ou então emudeciam. Por isso o rapaz não tem nome próprio. Ficou no seu passado. E ao tentar lembrar-se dele para o dizer aos que lho perguntam, fica mais anónimo. E surge sempre outro: deus. O seu nome e Deus são o que ele tem mais próximo de uma recordação, da ternura (pg. 70). Sem nome que se pronuncie, que seja som, fica apenas com o do Oleiro, o que desfaz as figuras que cria e deixa o pó da destruição pelo mundo, mesmo sobre os móveis da casa: «faça-se. Faça-se o tempo: / coisa a coisa Deus repete a morte. / E em cada nome, esperamos a explosão, / esse povoamento de restos,» (pg.18). Deus é uma recordação de um domingo, de uma cozinha a mexer-se erodida pelos sons que vinham dos campos. E muito mais. É um nome que torna o corpo um «exercício do medo» (pg.11). Um medo que começou na infância que teve que abandonar para se fazer à vida, prostituir-se. E com esta acção ficou mais anónimo mas também mais livre. Esta acção reconstitui e identifica o que o autor chama de «pátria»: o escárnio do outro e o seu poder são apenas formas de libertação, ou de estar perante a face do mal que tudo contamina. Aliás, dois nomes que aparecem são dessa face: Heinrich Himmler e Reinhardt Haydrich. A palavra que é o seu nome não poderia fazer parte desta semântica que aprofunda a língua e a torna maléfica, que serve a morte e a devoração. Dizê-lo seria apagar o que é o mundo, um mundo onde a necessidade do organismo a dizer-se «destrói a palavra harmoniosa» da natureza (pg.14).
Esta obra, como outras de Rui Nunes, é dura, esvazia com a escrita o que se entende por humanidade e repete esse vazio em cada palavra. A repetição não é apenas para revelar a verdade do que enuncia mas para ir mais além, à violência que é toda a repetição do próprio eco semântico. Parar para apenas ouvir. Apenas. Nada mais de alguma coisa humana entre os sentidos e o mundo. Apenas o silêncio que se revela na observação do mundo, da sua substância: «há um silêncio para a morte, há um silêncio para o medo, há um silêncio para o amor, há um silêncio para cada objecto que as mãos agarram, / para cada luz, / cor, / tempo. / O silêncio é o nome / único / das coisas» (pg.49). Aqui o silêncio não é uma construção, a falta de som ou a sua anulação, aqui o silêncio é a queda do homem para dentro de si e do mundo: uma única queda. E esta queda traz consigo novas formas de escuta e a vida que a «lupa» descobre. E também uma vida, não muito larga à semelhança de um grande delta que aporta à maturidade ou à velhice, mas uma vida muito estreita, quase a sumir-se, quase uma mancha. Por ser mancha alastra e contamina. Vem do mais fundo que o humano tem, da maldade da comunidade, e aflora à superfície do corpo, ao tempo do corpo. E para dar conta deste varrimento efectuado pela mancha, a escrita tem que ser pedra após pedra, letra após letra, para que fiquem apenas palavras libertas que dizem o mundo. Poucas, porém. Um início sempre, um regresso ao lugar de partida já sem nome e às acções desse tempo. Daí o nome de Cy Twombly, esse artista plástico norte-americano que fez da escrita, à revelia das principais correntes da década de cinquenta do século XX, a mancha da sua pintura: palavras, palavras inteiras de uma memória antiga; palavras inteiras ressequidas quando chegam aos olhos; palavras da criação no momento em que Deus disse «faça-se», idêntico verbo na mão criativa.
Como sempre acontece nos livros de Rui Nunes, há uma descida vertiginosa aos infernos que nos povoam, a uma lama que vem do passado e aporta no presente e que fecha portas a muitos futuros radiosos. No entanto, não há na obra de Rui Nunes um fechamento irreversível a um devir. Há na sua literatura, a que a portuguesa deve agradecer por ter entre os seus oficiantes alguém que aprofunda a língua em que falamos e na qual nos constituímos como comunidade, pontos luminosos que nos fazem bem, já que nos colocam perante a nossa precariedade (“um corpo é um sítio precário”, pg.68), ou melhor, reflectem o que somos. E, na verdade, a todos os níveis não somos mais do que restos: restos de um oleiro em seu trabalho incansável de despistar o humano, de o tornar errante; restos enquanto pedaços de uma herança que vem de longe; restos de significados precisos que enchem as palavras (todas as palavras têm uma história semântica para contar, «todas têm para trás um longo percurso» pg.67) e contaminam o que digo com elas; restos de uma explosão dos aspectos; restos de uma luz que na sua intensidade cega; e, por fim, restos de um corpo em queda. O que Rui Nunes nos diz é que somos este conjunto desde que nascemos e que, no tempo da nossa duração, se vai purificando até à dor e ao sofrimento. «Quem não sofreu que atire a primeira pedra. E todos o deixaram. Só. A escrever na terra. A palavra. Aquela. Que não será lida. O princípio. Ou. O recomeço», pg.61.
22 fevereiro, 2011
O Universo Sonoro

Tenho andado arredado desta actividade. E a razão é quase sempre a falta de tempo.
Venho aqui trazer uma notícia: a publicação do meu livro «O Mundo é uma Paisagem Devastada pela Harmonia». Título que fui roubar a um verso do escritor Rui Nunes.
Esta obra tem por subtítulo [Ensaio sobre o ruído e por natureza o som]. É, na maioria das 230 páginas, um voo sobre o que se fez em torno do som e do ruído, nomeadamente, desde a segunda metade do século XIX.
É bom que a hegemonia da visão e, principalmente, a cultura visual ceda algum espaço à cultura do som. Sem o sabermos somos por vezes mais ouvido que visão.
Já à venda. Na Fnac, por exemplo:
http://www.fnac.pt/O-Mundo-e-uma-Paisagem-Devastada-pela-Harmonia-Luis-Claudio-Ribeiro/a349577?PID=5&Mn=-1&Ra=-1&To=0&Nu=1&Fr=6
30 dezembro, 2010
Em Alguma Parte Alguma

Autor: Ferreira Gullar
Título: Em Alguma Parte Alguma
Editor/ano: Ulisseia/2010
Título: Em Alguma Parte Alguma
Editor/ano: Ulisseia/2010
O livro «Em alguma parte alguma”, do poeta brasileiro Ferreira Gullar (prémio Camões) chegou a Portugal ao mesmo tempo que era publicado no Brasil, facto que deve ser assinalado, já que ao longo dos anos temos assistido à chegada ao mercado português (o mesmo deve acontecer e em maior escala no Brasil em relação a autores portugueses) de alguns excelentes poetas que conhecíamos apenas de nome ou de poemas em revistas da especialidade ou antologias. Claro que quem anda actualizado se lembra de uma antologia (Obra Poética) deste autor publicada há alguns anos pelas edições Quasi.
A obra de Ferreira Gullar, já extensa, funda-se numa relação com o real e, neste livro, no permanente encontro com a ausência, mesmo da linguagem. A poesia aparece sempre por detrás do que não se sabe. A língua é aqui um dispositivo que diz simbolicamente o mundo e ao inscrever o nome, «pêra», por exemplo, põe em relevo um «máquina viva» em sua entropia. Ao ler estes poemas de Gullar, sobretudo os da primeira parte, vem até nós a expressão de Roland Barthes, a de que um texto (ou um poema) é um tecido, uma teia, através da qual a aranha se desfaz. Este tecido é feito de muitas texturas. Muitas o poeta convoca, do ínfimo às estrelas, do cheiro das flores ao brilho incessante dos astros. E esta convocação tem como fito «reinventar o certo pelo errado», mesmo que isto signifique o encontro com o corpo em perda e com a morte. Um encontro na palavra com os silêncios do mundo: «a poesia é, de fato, o fruto / de um silêncio que sou eu, sois vós, / por isso tenho que baixar a voz / porque, se falo alto, não me escuto».
Para ler.
28 dezembro, 2010
A Eternidade das Pedras

Uma exposição do fotógrafo Pedro Inácio (Stones: the perpetual peace, http://www.kfcenter.or.kr/english/art/01_read.asp?num=4018#) esteve patente ao público no Korea Foundation Cultural Center, Seoul, em Novembro de 2010. Este texto que aqui se reproduz faz parte do catálogo.
A Eternidade das Pedras / The Eternity of Stones
A Eternidade das Pedras / The Eternity of Stones
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
(Carlos Drummond de Andrade - 1902-1987)
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
(Carlos Drummond de Andrade - 1902-1987)
Estas fotografias não são de pedras rolantes mas de pedras imóveis que nunca conheceram outra paisagem. Prepararam-se desde o início dos tempos para fazerem parte dela. Dizem que na sua viagem por Itália, Goethe trazia das viagens pelo campo os bolsos cheios de pedras. Para um poeta aquelas pedras deviam ter as marcas das grandes batalhas e das escolhas feitas por mãos criativas. O que ficou para trás, se para o futuro sobraram os grandes monumentos e estátuas, devia ter uma história para contar, impressões dos gestos, possivelmente os sons de um tempo que há muito acabou. Como muitos de nós em crianças, Goethe sabia que aquelas pedras deslocadas das suas paisagens iriam no dia seguinte para o lixo. A pedra é bonita ali, sob a luz e o vento, desviada para outra paisagem só lhe resta ser o despojo de um dia em viagem pelos campos e pelas praias.
Talvez por isso, Pedro Inácio capta-as na sua nudez elementar, guardando delas diferentes idades, espaços e figuras. Se algumas pedras, coloridas pelos líquenes, parecem ter chegado à idade maior, outras parecem ter nascido agora, vindas do ventre de todas elas, ainda tão frágeis que a nossa visão as imagina barro e pó.
Olhemos então para elas, cruzando o nosso olhar com o do fotógrafo. E o que nasce em cada um de nós é certamente o que deve aparecer aos olhos de um escultor: aquele maciço mineral tem, sem o saber, uma forma que avança do seu centro até à superfície e o individualiza na paisagem. O seu recorte é uma aparição que por instantes se solta para se fixar no olhar.
Como acontece no humano, também o que é mais frágil, ou se mostra mais exposto, sofre com o tempo. Sem o uso de nenhum instrumento, apenas cedendo à erosão, a pedra expõe-se, metamorfoseia-se frente ao sol, numa paciência de séculos. Algumas já estão muito próximas do seu destino, mineralmente podres, mas mesmo assim são heróicas sem o saberem. Há nelas a graça do mesmo; do que tranquilo espera que se cumpra o tempo, o seu. Mas a graça vem-lhes também de uma lembrança antiga como o dia, uma lembrança em perguntas: quantos homens já ali se sentaram, à sua sombra ou ao sol, a caminho de nenhures que é sempre a aventura? O que teria visto e ouvido a pedra se tivesse sentidos para tal?
A pedra não precisa de mais nada a não ser do nosso olhar. E com ele perscrutar, no mais ínfimo detalhe mineral, as impressões doutros tempos e do que vivo lhe tocou. As lendas acompanham as pedras. São substâncias nascidas de um desejo mitológico: perpetuar o que é fugaz no que parece eterno; perpetuar a catástrofe ou a alegria. A pedra dá-se bem com este desejo. Também a luz e a imagem destas fotografias desejam perpetuar um presente sobre o tempo em que estas pedras já não se mostrarão estáticas, contemplativas, mas grãos de areia ou solo arável.
Quem nasceu nas encostas de uma montanha relaciona-se com esses monstros serranos através da dimensão: de grandes e difíceis de escalar, passam com o nosso crescimento a ser mais pequenos. Estreitam-se as pequenas grutas onde nos escondíamos e a longa figura que nos tinha marcado na infância apresenta-se agora diferente, envelhecida. Sabemos que o tempo é uma evocação da matéria, mineral ou orgânica, por isso as fotografias de Pedro Inácio não captam apenas a diversidade natural mas também o que fomos e o que seremos, já que tudo está unido pelos elementos que possibilitam habitar o mundo: o sol, a terra, a água e o ar.
Luís-Cláudio Ribeiro
17 dezembro, 2010
Uma boa prenda de Natal

Título: Antologia
Autor: Fernando Echevarría
Editora/Ano: Edições Afrontamento/2010
Autor: Fernando Echevarría
Editora/Ano: Edições Afrontamento/2010
Quando já lia filosofia, falamos no início da década de 80 (eu sou dessa ímpia geração), apareceram no mercado dois livros que pouco tendo a ver com o exercício de um pensamento reflexivo sobre a filosofia ou qualquer dos seus objectos, despertaram em mim uma enorme curiosidade. Dar a dois livros de poemas os nomes de Fenomenologia (1984) e Introdução à Filosofia (1981), pareceu-me na altura, e a esta distância, uma deslocação de campos da crítica e criação.
Vem agora Fernando Echevarría lançar no mercado uma reunião parcelar da sua poesia a que chamou apenas Antologia, unindo no mesmo objecto alguns dos principais poemas dos livros que vem publicando desde 1956. Se agora me parecem distintos estes poemas é porque o tempo passou por eles, deslocando-os também para a minha reflexão sobre o real. Na verdade, Echevarría constitui no panorama da poesia da segunda metade do século que findou, um caso exemplar: uma poesia construída em torno dos elementos, problemáticos ou não, que permitem reflectir sobre o conhecimento que temos do acontecimento, e do modo como este conhecimento atinge, mesmo que apenas simbolicamente, a nossa forma de sermos.
A sua leitura tem que ser feita com uma atenção extrema ao movimento e ao ritmo do verso, e uma atenção redobrada à torção semântica que Echevarría produz nalgumas palavras que nele são elementares.
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