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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

25 abril, 2010

O EXCESSO DE NÓS



NECROPHILIA
Autor: Jaime Rocha
Editor: Relógio d'Água, 2010

Imagem: quadro Beata Beatrix, de Dante Gabriel Rossetti, cujo pormenor é reproduzido na capa do livro.


Necrophilia, o quarto livro da tetralogia a que Jaime Rocha chamou «da assombração» é uma obra que situa o leitor (que sou) num lugar do moderno habitado pela noção do fantasma. Entende-se aqui fantasma a figura que ocupa o lugar de um outro que se deseja, uma realização impossível. É então o desejo de um para o outro que constrói o fantasma, noção que Lacan aplica noutros contextos mas que neste livro se reúne ao desejo de um pela amante que deixou de existir.
Embora Jaime Rocha não nos informe de onde arranca este título e a personagem cujo peito foi preenchido por um vazio, o livro tem na sua capa pormenor do retrato Beata Beatrix (que remete para a Beatrice, de Dante Alighieri) e o nome Beatrix em topo de página (em dedicatória), depois de prefácio de João Barrento e citação de Edgar Allan Poe. Esta beata Beatriz é a poetisa Elizabeth Siddal (1829-1862), Lizzie ou Sid, musa de pré-rafaelistas e mulher de Dante Gabriel Rossetti, encontrada morta pelo pintor com uma overdose de láudano.
A dor de Dante foi tão intensa que o levou a escrever alguns poemas que colocou junto ao corpo da amante. Do corpo exumado, sete anos depois, foram resgatados esses versos que deram origem ao livro The House of Life (1881).
Jaime Rocha parte assim da constituição desse fantasma, mas que se percebe não ser a mesma história de amantes, para escrever Necrophilia, citando a ideia de Poe de que não haveria melhor tema para uma poética do que a morte da amante colocada nos lábios do amante.
A constituição desse fantasma pelo «desejo negro» é, nestes poemas, a construção de um homem e uma mulher num impossível encontro pelo mundo: A mulher passa numa clareira, mas nas / veias do homem apenas existe o resíduo do seu cheiro, uma visão indefinida. (pg.35)
A visão que o homem tem dela é «demasiado brutal para um humano». Mas assim é para todo o fantasma e, sobretudo, para o sentimento que acompanha desde o início a construção, lado a lado, desse fantasma. Esta construção que poderia, à partida, ser pensada doce em lábios do amante (como refere o poeta norte-americano) torna-se o levantamento de todos os acidentes, já que o acidente é a mulher. Há, portanto, na imagem, um sacrifício constante de quem não tem existência. E o homem divide-se num caminho entre a terra e o céu, numa vã procura (já o sabe à partida) mas que é preciso percorrer se quiser afastar-se das imagens dela no sonho e dos restos dela no quotidiano para se colocar perante o sublime: Toda a perfeição se anuncia nos insectos que roem as papoilas (pg.41).
A alegria não lhe pertence, e só dominando o tempo e os dois planos da existência, onírico e real, pode chegar a um fim. E para tal revê-se o homem noutros, pedreiro ou cavaleiro, (a vida e a morte) que expressam várias evoluções mas que aqui se apresentam em ofícios que não lhes pertencem, como se desconhecessem as leis e as regras. Tudo parece condenado, assim é o lugar do fantasma, ou pelo menos a sua construção: o homem sabe. O que ele diz é falso (pg.46).
O homem dos poemas também sabe que só a doença cura. O cura-me para que eu possa morrer (de Broch) ou cega-me para que eu possa ver, é aqui transfigurado: ele quer que ela ressuscite para a matar outra vez (num volver constante da culpa), para que maior seja a dor, «para que o choro regresse com mais força» (pg.47), já que nada pode atenuar a sua dor. Só o excesso é possível, e a morte. A morte de tudo é a desaparição do assombro. Mas tem que ser tudo, «tudo, até os cães,» tem que desaparecer na «escuridão» (pg.73).
Entre a culpa e a sua impossível expiação; entre o desejo de tê-la e a sua impossibilidade; entre estar assombrado e pisar um chão ainda sem nenhum rastro, nasceu outro fantasma, ele próprio já sem o tempo (que todo o humano tem) da assombração, que se foi no cansaço da existência e da lucidez. Sem o saber, o homem estava a tornar-se transparente. Mas não é nisto que nos transforma o nosso tempo? Fantasmas.
O trágico e a ironia são duas figuras através das quais podemos ler estes versos de Jaime Rocha e, por paradoxal que possa parecer, também são estes os conceitos em que se alicerça a modernidade tardia, sob o peso de uma estranha torção.

1 comentário:

Anónimo disse...

Vou passando por aqui... de quando em quando...
E encontro sempre belos textos, os seus, que transpiram sensibilidade...
Bem haja e não fique 'transparente'...