Etiquetas

Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

23 março, 2010

O AFECTIVO DE NÓS


Maria Filomena Molder
Símbolo, Analogia e Afinidade
Edições Vendaval, 2009
(capa: pormenor do desenho Sonhar Acordado de Adriana Molder, reproduzido integralmente na página 7)

O livro que hoje aqui trago não é um opúsculo de fácil leitura. Maria Filomena Molder parte de uma «iluminação» que teve em criança para construir um esboço entre analogia e afinidade com o símbolo pelo meio: «Um fim de tarde, enquanto descia por uma rua íngreme em frente da minha casa […] dei por mim, entre conversas e brincadeiras, estupefacta, a surpreender o horizonte longínquo, o mar […] Subitamente entrevi que tudo aquilo tinha estado à minha espera sem eu o saber». Para este livro de 76 páginas a autora convoca autores que de há muito lê a analisa. De Kant a Fernando Gil são inúmeros os contactos com autores modernos e contemporâneos, seguindo-lhes os dizeres e, principalmente, tentando neles evidenciar a distinção que subjaz em analogia, afinidade e símbolo e o seu parentesco, ou não, naquilo a que o humano chama «vida».
O que vem de longe, que nos precede tal como aquela constatação na infância da autora, parece revelar-se em símbolo, não sendo este mais do que um arquétipo, uma «imagem pairante» que se determina num tempo e num espaço e, embora precedendo-nos, acompanha-nos. Há nesta noção uma alegria do Vivo que a transcende já que é necessária a essa determinação a acuidade própria de quem está atento ao mundo e, mais, que ganha pela linguagem autonomia em nós. Marca. Mas por ser binário, o símbolo pode ser um ruidoso fundo que pode nunca chegar a determinar-se. O vivo ficaria assim arredado de um percurso de mediação com o mundo. Talvez por esta disposição natural do símbolo, o humano, na evolução, ganhou mais «duas matrizes distintas», a analogia e a afinidade. Na verdade, as formas e funções (se assim podemos dizer) são distintas. As formas analógicas consagram, sobretudo, a reunião dos sentidos, mesmo na ancestralidade da metáfora, já que o seu campo se instala na dualidade da entidade linguística e psíquica (isto é, figura e imagem em Aristóteles). O eclodir da metáfora é o despertar do carácter analógico que pode existir entre dois elementos. Mesmo no poema este cria um movimento analógico na língua do outro e este cria na sua língua um sentir não analógico.
Neste carácter analógico, que pode ser afectivo, nenhum enigma existe. Já o mesmo não podemos dizer da afinidade: «a essência da afinidade é enigmática», cita Benjamin a autora. E a partir do texto benjaminiano «Analogia e Afinidade», Molder conduz-nos até essa estranheza em linguagem: «a afinidade é destituída de expressão», portanto, não comunicável. Este facto lembra-nos a descida a uma semântica privada que não pode estar presente na linguagem em comunicação: a queda comunicativa seria imensa. Então, a afinidade é uma parceria que não se diz e que persiste nos mais variados campos: do amor, da dor e da crença, por exemplo. Se é próprio da analogia atribuir a dois elementos distintos funções matricialmente idênticas, cabe à natureza desenvolver afinidades. Daí que em Goethe as metamorfoses aconteçam por «afinidades electivas». São aparições do que se criam em silêncio e na mudez, mesmo debaixo da língua: a «afinidade é irmã do emudecimento».
Talvez por isso o andaime de Wittgenstein não entenda este problema.
Um livro para ler devagarinho.

Sem comentários: