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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

05 fevereiro, 2007

A Ode Marítima, na Casa d'os Dias da Água


A Ode Marítima, de Álvaro de Campos (mais conhecido por Fernando Pessoa), é um texto difícil de encenar. Por duas razões: a primeira é que não sabemos como abordar este longo poema (colocarmo-nos na pele de passivos leitores não chega); a segunda é que desconhecemos o palco onde o poema se constrói. Temos uma ideia que ele se situará entre um cais de pedra, lá ao fundo, junto ao Tejo, e numa ilha deserta, onde o convívio com a solidão dá lastro à maioria dos versos. Lemos este poema muitas vezes. Somos sempre jovens quando lemos ou ouvimos este poema. O volante que o conduz não é mais do que a força dos nervos, carne e sangue. E porque somos portugueses, o mar mexe sempre connosco. Não só o mar que está longe e é sempre longe, mas todas as actividades e técnicas marítimas. Nascido nessa convulsão das vanguardas do início do século vinte, a que se deve juntar toda a invenção e a reprodutibilidade técnica, a Ode Marítima é lida de maneira distinta por cada português. Isto é uma certeza. E para os lados da Estefânia, acabou hoje, Domingo, dia 4 de Fevereiro, a representação desse poema moderno de Álvaro de Campos, pela voz de João Garcia Miguel. A encenação foi de Alberto Lopes, com jogo de luzes de Alexandre Coelho. Pelo que vi e ouvi, gostei, embora haja em mim, nalgum canto escondido, uma leitura deste poema que vem dos meus dezasseis anos. E mesmo que o ouvido interior me esteja sempre a recitar a Ode, a dizer-me como se diz o poema e a respirar sereno ou agressivo em cada verso, gostei da encenação e da respiração do actor. Decorar um poema com esta extensão é um trabalho árduo. Notamos no dizer de João Garcia apenas um erro (que pode ser impressão minha): tinha uma mnemónica que por vezes, involuntariamente, era contrária ao pulmão do poema e ao sentido. Mesmo assim gostamos. Da tranquilidade com que tudo foi feito. A pobreza do palco remetia-nos para esse cais de pedra e, por vezes, para uma praia deserta do Pacífico Sul e o som ajudava a isso, predispunha os nossos sentidos para um mar cada vez mais ausente.

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