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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

21 fevereiro, 2007

A IDADE E O DESEJO, das pedras

(fotografia de Pedro Inácio - Penedos de Fajão)
Nós, os homens, estamos votados à extensão e ao movimento; estas duas formas universais são aquelas em que todas as outras restantes, em particular as sensíveis, se revelam. (Goethe, Máxima 892, HA 12)

O homem pré-histórico desenhou e gravou na pedra a sua representação do mundo (o que aliás foi pretensão de toda a arte até ao moderno). A partir desta ideia originária, a pergunta que nos assalta quando vemos as fotografias de Pedro Inácio é a seguinte: pode a pedra, passados tanto séculos depois daqueles primeiros, e um século depois do aparecimento dos mecanismos de reprodução técnica, ter em-si uma representação da sua auto-formação (do espaço e do tempo por onde andou) e constituir o inverso do que o homem sempre fez, isto é, desejar representar o humano? A resposta não pode ser dada.
Sabemos que o convívio tem destas coisas: dois corpos que partilham longamente o mesmo espaço e tempo começam a parecer-se, tal como o náufrago se começa a parecer com a ilha deserta aonde chegou. No entanto, há no minucioso desenho da pedra em relação ao humano, o mesmo que aconteceu ao rosto dos meus avós: aproximaram-se um do outro. O que Pedro Inácio realiza com a fotografia (mas que poderia ser pintura ou cinema) é a deslocação para o papel (ou ecrã) do rosto reproduzido fora de si, num meio natural. Para além desta condição artística junta-lhe a imensa solidão da pedra, do seu estilo, que é a sua minúcia natural e de uma forma que não é mais do que os limites da pedra na paisagem. Estas fotografias afectam-nos de dois modos. Primeiro, e bem moderno, existe a hegemonia da visão sobre o dado natural. Segundo, enleva o espectador: ao poder deslocar o lugar da pedra para o objecto de arte, constitui para o espaço humano novas geografias que são sempre, imaginariamente, enriquecedoras; por outro lado, ao «roubar» a pedra ao seu poiso eterno, aproxima-a, faz dela coisa humana. E ao fazer dela coisa humana, faz-nos lembrar o que muitas vezes esquecemos: que também a natureza está sujeita ao tempo e ao espaço e, por eles, à degradação e ao abandono, como qualquer rosto, aliás.
Tal como a natureza se vê reflectida na arte, (desejando, ancestralmente, a arte manter um arco tensional, mimético, com a natureza) também no mundo natural vemos reflexos nossos que, para o bem, queremos preservar, e este é um normativo ecológico mas também uma forma antiga de conviver com o que tem acompanhado a nossa evolução e está subjugado, muitas vezes, aos ditames do progresso. Continuarmos a ver-nos no mundo, desenhados nas rochas ou nas árvores, em figuras bem precisas como são estas fotografias de Pedro Inácio, é continuarmos na ideia de um convívio com algo que já estava antes de nós e aqui permanecerá depois do nosso encontro com a perdição (seja ela a morte ou a catástrofe).
Os rostos que a natureza nos oferece não nos pertencem, não são nossa propriedade, são apenas sinalizadores dos caminhos das florestas ou dos desertos, por onde o homem contemporâneo passa, náufrago de um percurso, desejando apenas atingir um fim: chegar. Esquecemos há muito o que estes rostos de Pedro Inácio nos querem dizer: que o seu desenho e sombras são elementos do nosso pensar. Vamos então sentarmo-nos à beira dos desfiladeiros, junto deles, e imaginar o desejo das pedras.
E este desejo pode ser: que todas se unam até perfazermos um único continente.
Afinal, foi assim que tudo começou.

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