Acompanhei a produção poética de Manuel António Pina a partir de «Aquele que Quer Morrer» (Na Regra do Jogo, 1978) e só depois cheguei a «Ainda não é o fim…» (A Erva Daninha, 2ª edição, 1982). Soube-se agora do seu desaparecimento prematuro. E lembro o seu poema «algumas coisas» onde fala do peso da memória que se «instala em todas as coisas de dentro para fora». Poucos poetas nas últimas décadas trabalharam tão afincadamente a memória, literária e individual, como Manuel António Pina. Havia na sua poesia o desejo de reunir o que na sombra ou no chão é fundamento do que é explícito, já que aquele que está vivo (que é, afinal, aquele que quer morrer) «dança sobre os destroços de tudo». É grande e profundo este levantar em verso «pequenas frases» que dão viço à vida. Sem elas o deserto crescia para fora, e ai daquele que traz em si desertos, lembrava Nietzsche. Mas aquele que quer morrer, lembra-nos, é aquele que quer conservar a vida. Porém,
Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se demais nestes tempos (inclusive cala-se).
Lisboa a ver o Porto, 19 de Outubro
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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)
20 outubro, 2012
16 outubro, 2012
01 junho, 2012
Em memória da minha filha Francisca
Tal como há dez anos também agora as cerejas se mostram vermelhas nas árvores. Vêem-se ao longe, dos caminhos que nesse dia não chegamos a percorrer. Ficamos muito antes quando ela já levava a brincadeira nelas: correr entre as cerejeiras, chegar aos ramos que dão para os cinco anos; dizer «papá posso comer assim?». E eu a dizer que é preciso lavar. Ela conhecia bem o sítio da água.
Inquieta como sempre queria chegar antes de termos começado a viagem. Inquieta de luz. Que via a sua inocência que nós não vemos? «Posso andar no tractor do tio?» perguntava a Maria, e ela que não. Mas foi só da primeira vez. Depois quis subir. Sentiu o que é a brisa que atravessa a Gardunha e o cheiro forte das árvores. Nesse ano não. Ficou-se distraída num lugar da estrada, naquela por onde poucos já passam. E todos os anos nesta época é assim, e todos os dias é assim: nasce um pomar de cerejeiras só para ela, com água fresca e tudo. E nasce em mim uma árvore às avessas que é só dor.
Mas Francisca, já não existe a quinta, por lá passa agora um túnel húmido e sombrio, cortaram todas as cerejeiras. E também a água foi levada para outros lados. E a vida.
Inquieta como sempre queria chegar antes de termos começado a viagem. Inquieta de luz. Que via a sua inocência que nós não vemos? «Posso andar no tractor do tio?» perguntava a Maria, e ela que não. Mas foi só da primeira vez. Depois quis subir. Sentiu o que é a brisa que atravessa a Gardunha e o cheiro forte das árvores. Nesse ano não. Ficou-se distraída num lugar da estrada, naquela por onde poucos já passam. E todos os anos nesta época é assim, e todos os dias é assim: nasce um pomar de cerejeiras só para ela, com água fresca e tudo. E nasce em mim uma árvore às avessas que é só dor.
Mas Francisca, já não existe a quinta, por lá passa agora um túnel húmido e sombrio, cortaram todas as cerejeiras. E também a água foi levada para outros lados. E a vida.
13 maio, 2012
UMA POSSÍVEL HABITAÇÃO
O livro Barro (Relógio d'Água, 2012) é na obra de Rui Nunes um elemento singular. A palavra «barro» que escolheu para título reflecte essa singularidade: por um lado é matéria-prima, arquétipo narrativo que «enforma» alguns dos seus livros; por outro é matéria autobiográfica, remetendo para o avô oleiro. O livro compõe-se assim em duas vertentes: a primeira dá-nos conta dos principais temas que constituem a obra já vasta deste autor (o primeiro livro, «As Margens», é de 1968); a segunda acrescenta-lhe as suas memórias, algumas delas inscritas noutros livros do autor. Este trabalho é feito num cerzimento metódico, unindo fios dispersos, unindo tempos e palavras que lhe são elementares. Assim se faz a literatura.
Um dos temas recorrentes na obra de Rui Nunes é a noção de pátria, agora identificadas: duas da infância, três do homem adulto. Pátrias sensíveis é do que falamos. A primeira é terra e casa, na Beira Baixa, que vem a nós sob uma luz de verão, intensa, que coagula no limiar e torna escura a habitação. Por isso o campo e a deambulação. Enchem as páginas desta pátria, bichos, pó de barro, chão e brincadeiras. E nelas os sentidos projectam-se até aos mais pequenos movimentos e segredos.
Depois da cegueira da luz, ao rés do chão, a outra pátria tem uma brisa marítima, atlântica, lá para os lados de Setúbal. Aqui tudo é diferente: é o mar que explode de vida e enche de luz a habitação. Temos depois mais três pátrias: a de Wachau no Outono, onde se vê, a partir do Danúbio, os restos de uma civilização e «um rio perdido entre a nascente e a foz». Mais a norte Kirkenes, terra vertical sobre o mar, um arrepio profundo. E, por último, a que defende uma outra noção de pátria para os homens: uma pátria sem território apenas corpo, nómada, com o nome próprio de «Viagem».
Este livro está organizado como se fosse um livro de cânticos, aqui e ali intercalados por um refrão. Para decorar, conforme os escritos mais antigos, os primeiros. E como canção, a escrita imprime uma determinada velocidade, ajudada pela versificação. A matéria é, como vimos, a vida; pontos de luz que se unem vindos do passado e se aconchegam no presente que tem sempre uma palavra a dizer ou a acrescentar um hálito de tristeza. Há nesta matéria, substância suficiente para uma definição autoral de escrita e literatura.
O «Faça-se» é aqui não a mediação «ad-hoc» mas a margem da língua que ainda toca no mundo: uma margem antiga, primégina, quando a linguagem quis ser a ponte entre o que é humano e a perdida physis. Se a linguagem primeiro e depois a escrita afastaram o homem da sua natureza, é possível ainda encontrar nesta língua de Rui Nunes um uso em criação e não apenas em mediação. É isso que deve fazer a literatura: encontrar essa margem de contacto, na linguagem, entre coisa humana e natural: «todas as palavras cortam, à nascença. Por isso, / obrigá-las continuamente a renascer, / embora seja também contra nós que renascem.» É necessário, por isso, arruinar a sintaxe, antes que palavras «inventadas» se interponham e tornem insignificante a língua e a vida. Talvez «o fim de qualquer escrita seja a sua destruição». E por esta destruição se destroem também palavras inventadas sobre a ruína, como «deus».
Nunca se sabe o lugar de contacto, nem nunca podemos regressar pelo mesmo caminho. Não há sinais para o retorno. Nesse lugar pode erguer-se sempre uma habitação, mas precária, radicalmente humana, mas sempre pobre: «e dessa unidade tão débil, da veemência dessa pobreza, se fez, se faz, um texto.
Sem pátria. Sem poder.
Quase sem nome.»
Sinto-me mais vertical com livros assim.
05 maio, 2012
Orquídea
A única planta que tenho em casa é uma orquídea. E todos os anos em meados de Abril o verde mancha-se de lilás. Este ano nasceram-lhe cinco bonitas flores. Todos os anos parece haver mais uma. Depois é vê-las todos os dias quando chego a casa. Mas em cada três dias cai uma flor. E hoje, dia 5 de Maio, caiu a última que não guardei. E eu fiquei a olhar aquela haste que queria encher o mundo, a ficar cinzenta e a pensar murchar. E a pergunta que faço é: o que seremos - eu e planta - daqui a um ano, quando a planta se lembrar de ser flor outra vez?
18 fevereiro, 2012
Sentir

Autor: António Salvado
Obras: REPOR A LUZ e AURAS DO EGEU e de todos os mares
Editora: Fólio Exemplar
Ano/Cidade: 2011/Lisboa
Há poetas que vêm connosco desde sempre. Perdidos na infância, ambos. Lembramos nomes. Às vezes ainda não como criadores de poemas e obras mas apenas um nome. Depois chegamos àquela idade que se deseja ler sem sabermos a causa. É aqui que surge António Salvado. Como outros, mas no meu tempo apenas, limitou uma pátria sensível e sobre ela escreve. Se este texto tivesse outro alcance, podia falar de uma cultura sensível, aquela que permanece inviolável nas comunidades beirãs: um olhar muito próximo da natureza que ele soube captar como poucos; um ouvido apurado para o fazer dos insectos se é verão; o itinerário das águas e a metamorfose das flores. E como todos os que chegam à sua idade (Castelo Branco, 20 de Fevereiro de 1936), sente-se agora nos seus poemas um outro alcance, uma espécie de ética poética que quer transmitir aos seus leitores. E por baixo, mesmo no lugar em que o seu sangue tinge as ribeiras, o assombro constante de quem pela primeira vez viu crescer e definhar uma flor.
Os poetas lembram-nos mais que outros o que é estarmos vivos, mesmo que cercados pelo inverso.
«Ó Cesário, tu que amavas a cidade e detestavas o campo, deixa que alguns corações repousem no zumbido sazonal da paisagem.»
Obras: REPOR A LUZ e AURAS DO EGEU e de todos os mares
Editora: Fólio Exemplar
Ano/Cidade: 2011/Lisboa
Há poetas que vêm connosco desde sempre. Perdidos na infância, ambos. Lembramos nomes. Às vezes ainda não como criadores de poemas e obras mas apenas um nome. Depois chegamos àquela idade que se deseja ler sem sabermos a causa. É aqui que surge António Salvado. Como outros, mas no meu tempo apenas, limitou uma pátria sensível e sobre ela escreve. Se este texto tivesse outro alcance, podia falar de uma cultura sensível, aquela que permanece inviolável nas comunidades beirãs: um olhar muito próximo da natureza que ele soube captar como poucos; um ouvido apurado para o fazer dos insectos se é verão; o itinerário das águas e a metamorfose das flores. E como todos os que chegam à sua idade (Castelo Branco, 20 de Fevereiro de 1936), sente-se agora nos seus poemas um outro alcance, uma espécie de ética poética que quer transmitir aos seus leitores. E por baixo, mesmo no lugar em que o seu sangue tinge as ribeiras, o assombro constante de quem pela primeira vez viu crescer e definhar uma flor.
Os poetas lembram-nos mais que outros o que é estarmos vivos, mesmo que cercados pelo inverso.
«Ó Cesário, tu que amavas a cidade e detestavas o campo, deixa que alguns corações repousem no zumbido sazonal da paisagem.»
Aquilo que direi…
[…]
E só nomes gerados pel’ausência
Aqueles que ouvirás:
Com sílabas de amor fora do tempo
E conformando um comovido espaço.
(do livro Repor a Luz)
[…]
E só nomes gerados pel’ausência
Aqueles que ouvirás:
Com sílabas de amor fora do tempo
E conformando um comovido espaço.
(do livro Repor a Luz)
Agora que faz anos, daqui lhe mando uma abraço.
11 janeiro, 2012
A CRIANÇA
Escrever palavras, com um dedo de criança
para ficarem soltas no ar, «como alegria e mundo».
Escrever outras menos precisas, «como amor»,
só por descuido,
pois muitas mirram e morrem
sugadas pelo ar da manhã.
Mas o homem não sabe escrever de outro modo.
Nunca teve outro utensílio
apenas o dedo indicador com que desenha
as letras bonitas e redondas
que viu nos livros da casa.
«Desenhar casa», lembrou-se
e surgiu uma cidade
mistura de outras cidades do Sul.
Olhou para onde nunca esteve
e esperou que o ar a engolisse por inteiro.
Escrever palavras, com um dedo de criança
para ficarem soltas no ar, «como alegria e mundo».
Escrever outras menos precisas, «como amor»,
só por descuido,
pois muitas mirram e morrem
sugadas pelo ar da manhã.
Mas o homem não sabe escrever de outro modo.
Nunca teve outro utensílio
apenas o dedo indicador com que desenha
as letras bonitas e redondas
que viu nos livros da casa.
«Desenhar casa», lembrou-se
e surgiu uma cidade
mistura de outras cidades do Sul.
Olhou para onde nunca esteve
e esperou que o ar a engolisse por inteiro.
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