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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

15 dezembro, 2006

Sobre «Profanações» de Agamben


PROFANAÇÕES
Giorgio Agamben
Livros Cotovia, 2006
(Georges Seurat -Models)
Há neste livro um ensaio Elogio da Profanação que escrito à luz de alguns conceitos operativos que o filósofo italiano retraça desde a teologia, passando por Walter Benjamin, ilumina o tempo em que vivemos. O primeiro conceito é o de profanação, que era na origem a acção de restituir ao uso humano o que era do domínio do religioso e que se opõe, etimologicamente, a consagrar (exemplo: a consagração das hóstias que vão ser usadas na missa). Ainda agora a consagração e a profanação é uma separação, sendo a primeira, na origem, o sacrifício bem inventariado nos livros da antropologia e arqueologia humana. Na verdade, o sentido de profanação esteve desde sempre unido à religião, a uma acção de desacralização, e é por esta via que Agamben nos conduz até ao termo religio, não entendido como «aquilo que liga e une o humano e o divino» (religare), mas a atitude de distanciamento que deve sempre marcar a relação com deus (relegare). Então, o termo Religio não significa aqui o que une o humano à entidade divina, mas «o que zela por mantê-los distintos». Nada disto tem a ver com secularização que deve ser entendida como uma deslocação de funções e acções. Ao contrário da secularização, a profanação implicava em manter intacto o poder, desviando o espectro daquilo que é profanado, restituindo-o «ao uso», mesmo o próprio espaço que estava destinado a outro modelo.
Com o cristianismo e o sacrifício (redentor) iniciático, a acção sacrificial deixou de fazer a «repartição do uso entre os humanos e o divino». Com o sacrifício de um deus pelos homens, aquilo que era do divino entrou em colapso no moderno, imergindo no do domínio humano e posicionando o homem no limite, no precipício, «prestes a trespassar o divino». E é aqui que nasce, no entender de Agamben (e seguindo Benjamin no seu ensaio O Capitalismo como Religião), uma nova religião, o Capitalismo, que é, «essencialmente um fenómeno religioso» que se desenvolveu, sobre membros que são o uso e a religião, a partir do Cristianismo e se constitui como uma nova religião da modernidade. São-lhe atribuídas três qualidades: primeira, «é uma religião de culto», mais que todas as outras existentes; segundo, não há separação entre o sagrado e o profano, entre o lúdico e o trabalho, tudo é trabalho e este é o culto; terceiro, o culto desta religião não pretende uma aproximação ao sagrado, a uma expiação mas é a própria culpa, uma consciência em culpa que deseja ser universal e, no fim, «enredar o próprio Deus nessa culpa». A morte de deus celebrada tem como motivo a sua deslocação para o interior do destino humano e da sua condição. E se atendermos que vivemos desde esta «descoberta» no desespero, e não sendo possível o uso da palavra esperança (visível em muitos slogans sistemáticos), nem do jogo redentor do tempo, o que a religião Capitalista visa não é «a transformação do mundo, mas a sua destruição». Pode ser que esta destruição visada seja apenas uma passagem, não o sabemos, nem interessa ao tema. Mas revemos nesta qualificação as profecias de Marx, Freud e Nietzsche (o ethos do super-homem), bem como a opinião crítica do Novo Ocidente, nascido do desgaste religioso. Realizando a separação extrema, que o mesmo é dizer, realizando a separação do único, o profano coincide, também em vazio, com o consagrado. Tudo o que o homem é, faz e pode perdurar, incluindo o próprio corpo, é dividido não sendo mais possível o uso. É então criada a divisão do consumo em espectáculo que, como bem viram alguns Situacionistas, não são mais do que as duas faces da mesma moeda: o impossível acto do uso que não é mais do que o impossível presente. Somos memória e expectativa, passado e futuro e por todas as aldeias, vilas e cidades do globo isto é visível, quando em frases publicitárias os lugares, e neles as populações, se resumem a uma frase começada por «o museu da…». Ora, o museu é a «impossibilidade» de usar. Na verdade, quando geografias inteiras querem ser declaradas património mundial, querem ser declaradas Museu. Progressivamente, «as potências espirituais que definiam a vida dos homens – a arte, a religião, a filosofia, a ideia de natureza, a política, até – retiraram-se para o Museu», e isto só significa trocar o valor de uso pelo valor de exposição (conceito usado por Benjamin no seu célebre ensaio, A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica), e este valor torna impossível a habitação. O museu é na religião Capitalista o que era noutras a Igreja ou o Templo, e as hordas que aí afluem já não são peregrinos mas turistas («a primeira indústria do mundo»). «Museu não significa aqui um lugar ou um espaço físico determinado, mas a dimensão separada para a qual se transfere aquilo que, em tempos, era sentido como verdadeiro e decisivo e, agora, já não o é».
Profanar o improfanável «é a missão política da próxima geração».

1 comentário:

Anónimo disse...

o Agamben vai dar uma conferência em Serralves a 8 de Maio de 2007 sobre "a teologia política do nosso tempo".