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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

23 março, 2010


António Salvado
Otoño/Outono
Editorial Verbum (Madrid)
Trilce Ediciones (Salamanca), 2009
[traduções de A.P.Alencart e An Oshiro)

Numa parceria de duas editoras espanholas, António Salvado (Castelo Branco, 1936) edita Outono/Otonõ. Em três línguas (português, espanhol e japonês) os tercetos deste poeta português aproximam-se de Basho trazendo à natureza dos seus versos a luminosidade oriental. Não se desviando dos seus principais temas, quase sempre unidos a uma descoberta constante dos traços naturais que a linguagem conserva, António Salvado parte em busca do sentido «rente ao dizer».

O silêncio da Voz não é total:
um sussurro se esgueira
até ao meu ouvido


Este belo livro tem a acompanhá-lo desenhos do artista japonês Kousei Takenaka.

O AFECTIVO DE NÓS


Maria Filomena Molder
Símbolo, Analogia e Afinidade
Edições Vendaval, 2009
(capa: pormenor do desenho Sonhar Acordado de Adriana Molder, reproduzido integralmente na página 7)

O livro que hoje aqui trago não é um opúsculo de fácil leitura. Maria Filomena Molder parte de uma «iluminação» que teve em criança para construir um esboço entre analogia e afinidade com o símbolo pelo meio: «Um fim de tarde, enquanto descia por uma rua íngreme em frente da minha casa […] dei por mim, entre conversas e brincadeiras, estupefacta, a surpreender o horizonte longínquo, o mar […] Subitamente entrevi que tudo aquilo tinha estado à minha espera sem eu o saber». Para este livro de 76 páginas a autora convoca autores que de há muito lê a analisa. De Kant a Fernando Gil são inúmeros os contactos com autores modernos e contemporâneos, seguindo-lhes os dizeres e, principalmente, tentando neles evidenciar a distinção que subjaz em analogia, afinidade e símbolo e o seu parentesco, ou não, naquilo a que o humano chama «vida».
O que vem de longe, que nos precede tal como aquela constatação na infância da autora, parece revelar-se em símbolo, não sendo este mais do que um arquétipo, uma «imagem pairante» que se determina num tempo e num espaço e, embora precedendo-nos, acompanha-nos. Há nesta noção uma alegria do Vivo que a transcende já que é necessária a essa determinação a acuidade própria de quem está atento ao mundo e, mais, que ganha pela linguagem autonomia em nós. Marca. Mas por ser binário, o símbolo pode ser um ruidoso fundo que pode nunca chegar a determinar-se. O vivo ficaria assim arredado de um percurso de mediação com o mundo. Talvez por esta disposição natural do símbolo, o humano, na evolução, ganhou mais «duas matrizes distintas», a analogia e a afinidade. Na verdade, as formas e funções (se assim podemos dizer) são distintas. As formas analógicas consagram, sobretudo, a reunião dos sentidos, mesmo na ancestralidade da metáfora, já que o seu campo se instala na dualidade da entidade linguística e psíquica (isto é, figura e imagem em Aristóteles). O eclodir da metáfora é o despertar do carácter analógico que pode existir entre dois elementos. Mesmo no poema este cria um movimento analógico na língua do outro e este cria na sua língua um sentir não analógico.
Neste carácter analógico, que pode ser afectivo, nenhum enigma existe. Já o mesmo não podemos dizer da afinidade: «a essência da afinidade é enigmática», cita Benjamin a autora. E a partir do texto benjaminiano «Analogia e Afinidade», Molder conduz-nos até essa estranheza em linguagem: «a afinidade é destituída de expressão», portanto, não comunicável. Este facto lembra-nos a descida a uma semântica privada que não pode estar presente na linguagem em comunicação: a queda comunicativa seria imensa. Então, a afinidade é uma parceria que não se diz e que persiste nos mais variados campos: do amor, da dor e da crença, por exemplo. Se é próprio da analogia atribuir a dois elementos distintos funções matricialmente idênticas, cabe à natureza desenvolver afinidades. Daí que em Goethe as metamorfoses aconteçam por «afinidades electivas». São aparições do que se criam em silêncio e na mudez, mesmo debaixo da língua: a «afinidade é irmã do emudecimento».
Talvez por isso o andaime de Wittgenstein não entenda este problema.
Um livro para ler devagarinho.

14 março, 2010

Um problema ou a solução


Um Toldo Vermelho

Joaquim Manuel Magalhães

Relógio d'Água


Trabalharão com as palavras que lhes deixas,
Perguntarão os sentidos.
Ninguém mais escutará tua voz como tu a ouviste.
Assim errando falarão de ti
(Consequência do Lugar, pg.54)

Muitos têm revisitado a sua obra provocando ligeiras alterações no que tinha sido publicado, lembro-me de Teixeira de Pascoaes; outros têm encurtado a obra com alterações, lembro-me de Herberto Hélder. Mas em Joaquim Manuel Magalhães nenhuma destas hipóteses é viável com a publicação de «Um Toldo Amarelo» que, em nota do autor, substitui toda a obra anterior. Só que não há a possibilidade do confronto deste livro com os poemas anteriores do poeta.
O que é que a palavra nos pode ainda dizer? O que vem da necessidade e da convenção. Mas se cessa a necessidade, a convenção é um acordo que não serve a ninguém, muito menos ao autor. Fica só a palavra, milhões de vezes repetida nas vozes de outrora, que já não soa (apenas na gravação), e nos livros. Essa palavra unida a outras serviu batalhas, serviu o humano, foi domesticada (assim se pensava). Há sempre um tempo em que se tem que afastar, ficando só da batalha a substância, que não tem sentido, não pode ter, a não ser no instante em que se vê uma e outra vez. E no meio do silêncio, uma cesura onde a palavra ressoa sem carne, apenas halo, apenas o primeiro e último sopro que a insuflou quando foi. Temos esse direito mas não a sei comunicável, partilhável, em livro.
Mas se há esse desejo de tudo descerzir, de deixar os buracos para se ver outro espelho, de não remendar, ou melhor, de retirar do tecido-texto o que serviu à alfaiataria, para ficar apenas o osso, que mal há nisso? É o desejo oficiante. Descarnado, o poema mostra apenas a extinção, a dor e a morte (e o som), e no singular poeta o abandono da tarefa de marcar com sinais um percurso secular, nele de desencanto, que desejava outro. Real. Dói ver a vida posta em esqueleto sibilante com pouco do que faz os dias serem mais dolentes, representativos porém de uma passagem.Fica por conhecer o porquê deste problema (ou solução). Adivinho