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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

09 junho, 2009

Novas Mitologias, ou o condomínio fechado do café



"Elle est petite mais riche à millions, elle est ronde mais légère, elle a des tas de robes qui bruillent, tout le monde en est fou:

Jennifer Lopez? Non, la capsule Nespresso".

Alix Girod de l'Ain, La Capsule Nespresso, in Nouvelles Mithologies, ed. Jérôme Garcin, Paris, Seuil, 2007.

07 junho, 2009

AOS OLHOS DE UM DEUS DISTANTE


Os Olhos de Himmler
Rui Nunes
Relógio d’Água Editores, 2009


Sou culpado. Somos todos culpados. Tudo o que fazemos chama-se morte: um gesto, uma palavra, uma casa


A Viagem, que é o nome do primeiro capítulo deste livro de Rui Nunes, começa como um sopro e uma luz entre arbustos num deserto e acaba no mar. Thalassa. Thalassa., com que termina o livro é a palavra contida no grito dos heróis conduzidos pelo jovem Xenofonte entre Cunaxa e o Ponto Euxino quando avistaram o Mar Negro. Depois de uma longa travessia, fugidos da guerra, a visão do mar confirmou o regresso àquele elemento que eles tão bem conheciam: naquele líquido estava a liberdade e o cheiro da pátria.
É de libertações que trata este livro: da memória do crime (no caso de Andreas, o médico soldado, que se arrasta pelas ruas como um indigente), a memória de um paixão que se transformou em ódio (no caso de Greta que vive agora um lar de idosos, em silêncio com o mundo). Mas, sobretudo, a libertação de um tempo que dói.
A viagem de Andreas pela sua memória num real que já lhe é estranho, é a viagem de um homem em confronto com um tempo «que ora se alarga ora se comprime» (pg.15), tentando reconhecer no corpo que balouça um destino. A narrativa descreve os dois mundos em confronto minuciosamente, da cor ao som. O pormenor é neste livro, como noutros de Rui Nunes, o que naturalmente é o inexplícito, pormenores que fixam as personagens ao mundo. Não uma paisagem ou um pôr-do-sol, mas um insecto no seu voo ou uma pedra a rolar e a embater contra outra. Uma teia cerzida onde se monta a realidade que raramente é avistada. Nesta obra, a teia é produzida tanto pelas personagens como pela narração, em palavras que transportam a sua própria história e que ajudam a saciar a fome desse animal que é o mundo.
Resgatadas as memórias, contadas para poderem ser uma vida alinhada como outra qualquer, fica-se mais pobre, cada vez mais pobre até ao desânimo e ao irreconhecimento. Até ficarem apenas algumas palavras, em letra minúscula, como deus e corpo.
Neste polifonia, nenhuma palavra está fora do sítio, já que cada palavra é também ela o seu destino. Se alguma estivesse desalinhada a teia cederia ao primeiro contacto da voz. É preciso que todas as palavras sejam aqui inteiriças para serem totais, para se transformarem na única possibilidade da invenção.
As vidas de Andreas e Greta crescem para trás com a leitura, sem linearidade, são novos, velhos, jovens, felizes ou infelizes, mas crescem do interior das casas para a rua, e da rua para os lugares mais recônditos da casa, aqueles que usamos para os segredos da infância ou da juventude. E estes lugares vão aos poucos sendo inundados de mortes, de crimes, de ódios. Como se a vida do Homem fosse uma sucessão de desvios aos actos que poderiam levar à felicidade: «não invejamos unicamente o poder, o dinheiro, a felicidade ou a glória. Invejamos também o sofrimento, a doença e a tristeza […] invejamos o que é intenso» (pg.58).
O livro é uma teia de memórias que se atravessa como se atravessa lentamente um campo acabado de semear. A aridez é apenas uma impressão. À lupa aquele chão de palavras explode em cada árvore, ave, semente, fruto e mesmo no desenho que os pés gravam no chão. O resto é uma mancha que engole o mundo e o seu significado. Tal como os olhos de Himmler, «olhos de cal» (pg.98).
E aqueles que se conheceram há muito, que se amaram e se odiaram, voltam a juntar-se na velhice sob o mesmo tecto. A casa é já um sepulcro. O mundo é uma visão da alta janela da casa junto ao rio (austríaco), uma cor a desaparecer no silêncio. As mãos de Greta no pescoço de Andreas cumprem o destino e o sonho do deus distante que mirrou em nós.