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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

23 setembro, 2008

Por nada me atingir senão a fuga


Amadeu Baptista
Sobre as Imagens
/Sobre las Imágenes (trad. para o espanhol por Uberto Stabile)
Cosmorama Edições, 2008


Eis um poeta da geração de oitenta. Lembro-me de um livro seu, tenho a capa na cabeça: Maçã.
O que este poeta por este livro nos traz é uma leitura da pintura sacra que emergiu com a Renascença. Trata, sobretudo, dos catorze painéis «provenientes do antigo retábulo da capela-mor da Sé de Viseu, agora expostos no Museu Grão Vasco», nesta cidade, tal como é indicado em nota prévia.

Refazer a imagem com as palavras levanta sempre um problema de representação. E este problema prende-se a uma dualidade imagética: a que oferece a poética e a que construímos para um nome, uma cena ou apenas uma palavra (ressurreição, ascensão, Cristo, última ceia, etc). Portanto, o desconhecimento da pintura no leitor parece ser, no acto de ler, o desconhecimento do que é verdadeiro que se afasta poema após poema. Porque a prosódia que se aproxima (e pretende ser aproximação) oferece-se ao engano, à ilusão (como quase toda).
O poema não se perde, no entanto, na encenação. Mistura-se com um quotidiano sempre à espreita e à espera de fazer parte da história que está a ser contada a partir de uma memória desenhada. Não é, portanto, uma «recriação ecfrásica da iconografia desses painéis» mas o vir à língua uma época da pintura também ela encenando, por detrás do ícone, a vida quotidiana.

(Este livro mereceu o Prémio Internacional de Poesia Ibérica – 2008)

09 setembro, 2008

Uma Paciência Selvagem


Adrienne Rich
Uma Paciência Selvagem, Ed. Cotovia, 2008 (edição bilingue)
Tradução de Maria Irene Ramalho e Monica Varese Andrade

Traduz-se finalmente, em volume, Adrienne Rich para o português. É de assinalar o facto, bem como o seu atraso. Nascida em Maryland (EUA) em 1929 esta autora tem introduzido no contexto literário norte-americano (bem como noutros países) temas que são aberturas e vias para novas poéticas.
Na normalidade das línguas vivas (embora merecedoras de distinção em diferentes continentes, cidades ou aldeias, é importante descobrir contributos intralinguísticos a partir de posições ideológicas (sejam a favor da homossexualidade ou da não ocupação por colonatos judeus das terras palestinas. Rich escreve desde há muito sobre o problema da opressão, da doméstica à do estado. Não se furta a deixar-se queimar e a queimar os outros: the typewriter is overheated, my mouth is burning, I cannot touch you and this is the oppressor’s language (A máquina de escrever está sobreaquecida, a minha boca arde, não posso tocar-te e esta é a língua do opressor).

Como conselho: pode ler-se Rich juntamente com o ensaio “As Línguas de Eros” (in Os Livros que não Escrevi, George Steiner, Gradiva, 2008).

Espero voltar aqui.

O Eu Apócrifo de Diego Doncel


En Ningún Paraíso/Em Nenhum Paraíso, Averno, 2007
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães

A ideia de fantasma colou-se-me a esta poesia. O estranho não é o outro mas aquele que se vê transformado numa figura que apenas tem o nome que os outros lhe dão. E aquele que é fantasma mais fantasma se torna cada vez que o diz (o que é perceptível ao longo do livro) e no tempo de invenção de si-mesmo, pois inventa-se a partir dos outros para poder usufruir de uma realidade que tem como destino (a que não deve fugir: um princípio moral):
«He tenido que inventarme quién era para, de vez en cuando,
Creerme en posesión de algo de realidad
» (pg.42).
Só que esta possessão é também esquecimento. Ir em direcção à realidade para a possuir é deslocar-se para fora do seu horizonte, a caminho de outro, deixando o seu poiso pronto para ser reocupado. Este duplo vazio, em si e atrás de si, presente e passado, é o do morto (e da agonia):
«y lo que no sé es si puede mourir un muerto» (pg.44).
Não ter presente, pois está em trânsito, é não ter futuro, apenas passado. Mas este passado já não é o do transeunte pois é apócrifo e está fora dele (pg.67): de um lugar de ninguém «para um lugar de ninguém» (título de um poema do livro).

A noção de fantasma atravessa toda a literatura moderna derivada da «brisa espiritual» que percorria a geografia técnica e influenciou os ofícios humanos. E desde então foi-se incrustando em muitas artes, nelas derivando, sobretudo, da separação do indivíduo e da sua desnaturalização. A não pertença a lugar nenhum, tão presente neste livro de Doncel (que sempre assume os seus textos como autobiográficos); o caminho tracejado para outro lugar (outra geografia afectiva) onde seja possível uma naturalização (impossível) ou, pelo menos, o seu re-conhecimento e identificação (a procura de quem sou) são sinais a partir dos quais se chega constantemente a um encontro com a morte.
Expressar os desertos («Ai de quem traz em si desertos», Nietzsche) e encontrar-se com o fantasma é o mesmo que encontrar-se com o seu desaparecimento. No poema «Testamento», fantasma, desaparecimento e deserto, marcam o percurso poético. A substância deixou de ser a identidade para ser algo (paradoxal) bem mais real como a areia que na brisa viaja entre línguas, pátrias e continentes. Sempre o deserto onde o Eu é um sonho falso que o mundo «maligno» inventou; um eu que não serve (pg.77).

Já sei que nada vai salvar-me (pg.83)