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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

15 março, 2006

O Trânsito da Pintura



(para uma exposição de Ezequiel)

Desejamos ser voláteis enquanto a mão se afunda na tinta, na cor que é o enigma da terra, pois sua superfície. O pincel do pintor não é mais que um dedo hábil [táctil], robótico, dessa veia de cores que se levanta e distingue. Nada há a dizer aos olhos. Também eles livres procuram a fonte que é a mesma do pincel; olhos independentes que chocam com uma emoção ou, talvez e apenas, a vertigem do crescimento desregrado. E contra este desregramento natural o pintor nada mais pode fazer que “enquadrar” [entaipar] a pintura para que esta não absorva o mundo como um espelho e o multiplique.
O quadro quer ser Outro, e se não em-si, nos sinais que nele abundam, seja no aparelho de circulação da cor, seja nos óvulos solitários e entumecidos que estão prestes a rebentar na visão, como uma bactéria, contaminando. Por estranho que pareça a pintura quer pertencer-nos, negando, no movimento, a profundidade, abeirando-se da superfície colorida como bolhas que rebentam no fundo dos nossos olhos.
Há, nesta pintura, uma espécie de jogo cujo objecto é o desejo a fracassar mas mesmo assim a querer tornar-se potente em nós.
Quando caminharmos ao encontro das telas, olhando-as de frente ou de través, o traço em novelo esconde um olho, uma espécie de buraco negro.

06 março, 2006

Alguns Apontamentos sobre Arte




Arte não reproduz o visível, torna visível
Paul Klee, Escritos sobre a Arte
(na imagem: reprodução da obra «Mainpic» de Thomas Hirschhorn. PDA)

É evidente que existe hoje em dia uma necessidade de se proceder a uma identificação dos objectos artísticos, mesmo que seja a partir da sua desconstrução, para a partir desta acção se constituir uma sistemática da arte contemporânea. É igualmente evidente que se é fácil a classificação do mundo natural, uma sistemática da flora, por exemplo, e de muitos objectos humanos, é difícil criar páginas brancas, para inscrição futura, na sistemática da arte que chegou a este tempo. A razão é simples: muitos dos objectos artísticos perderam algumas características que «suprimiam» a dúvida de um dado objecto ser ou não colocado no campo artístico. O substrato, os materiais, as formas perderam-se em parte por uma desnaturalização da arte; e as qualidades que emergiam no sensível deslocaram-se devido ao desregulamento das noções de espaço e tempo.
Há dois tempos que provocaram esta dificuldade de catalogação: o primeiro, que se pode situar depois da primeira guerra mundial, foi a elevação do fragmento a categoria estética (bem visível na forma como os olhos vêem a paisagem na literatura e nas artes plásticas); o segundo, num tempo que alguns chamam de pós-industrial, a partir da Segunda guerra mundial, a elevação do virtual a categoria estética. Estas categorias não são «figurações» voluntárias de uma representação do mundo, mas enformações de uma problematicidade ontológica que desde o século dezoito tem colocado a condição humano e a sua constituição no centro do pensar (definindo pensar de um modo cartesiano que inclui também o sentir). Afastados cada vez mais da ideia de natureza (que se arrasta desde a antiguidade clássica) e do divino redentor, pela razão discursiva e pela linguagem, ao homem cabe uma tarefa imensa: tentar a possibilidade de uma marca e que essa marca seja ímpar no mundo. Assim, aliando-se a uma sensibilidade artística surge uma sensibilidade pessoal, com uma semântica do singular, que apenas pontua o rastro da obra, deixando de se ver um continuum. Ora, quem hoje se encontra voltado para as origens do objecto artístico ou da própria arte encontra não uma linha que dar-lhe-ia significação, mas uma translinearidade, não suportando por isso qualquer referencialidade e significação horizontal. Se o isto é e perdura do objecto clássico se constituía no presente e, pela perduração de si e da interpretação, se prolongava no futuro, hoje todo o objecto de arte abeira-se do futuro, e do espaço de contínua significação que aí existe, e é só por este discurso, ou uma literatura da obra, que se ganha o objecto e este o presente (cfr.Baudrillard e, sobretudo, nota sobre J.M.Lefebvre, em «Para uma Crítica da Economia Política do Signo», ed.70, pg.158). É esta forma de identificação e de presentificação que se tornou diferente, constituindo uma espécie de método que não pode ser usado no cânon ou numa sistemática clássica.
Por outras palavras, a concepção da arte até ao sec.XX supunha o transcendental (na Crítica da Razão Pura, Kant classificou a estética transcendental como o lugar de esclarecimento das condições de possibilidade da sensibilidade). Isto é, toda a arte, a sua produção e a sua relação com os homens remetiam para uma verdade, um absoluto e, por fim, para a própria experiência. Esta experiência não podia na altura ser pensada sob o ponto de vista da utilidade ou da elucidação das formas de produção, mas do indizível (é ainda do que não pode ser dito mas apenas anunciado que partem as noções do belo e sublime para Lyotard. Cfr., por outro lado, o célebre final do Tractatus de Wittgenstein). Este indizível era da ordem da transcendência. Mas como não pode ser do domínio do religioso, ele torna-se reflexivo (Cfr.Hegel na Estética): a arte torna-se reflexiva, tomando recentemente (o que já acontecia nas vanguardas do sec. XX), a reflexividade como a sua única característica reguladora e atractora do pensar. A obra é auto-referente e é reflexiva porque a significação que dela emana e nela está contida apenas pode ser encontrada na reflexão que originando uma nova espécie de estética deriva dela o prazer.